Diante da Montanha
Entre os grandes desafetos dos deuses gregos encontramos um em especial conhecido pela sua fama de driblar a morte e retornar ao mundo dos vivos, pelo que foi condenado a realizar um árduo trabalho que consistia em empurrar uma pedra montanha acima que, tão logo para lá era conduzida, rolava montanha abaixo. Essa rotina se repetia infinitamente. Tratava-se de um castigo para lembrar ao homem, reles mortal, da sua condição voltada ao pequeno mundo de sua vida cotidiana. Tal e qual Sísifo, nosso pseudo-herói, Julio Castro engendra suas ações nessa série de trabalhos intitulada Agregados o seu rolar de pedras particular em que vai aparando arestas sem, contudo, dar-se por concluído seu gesto de repetição e acumulação. A cada nova montagem que realiza extrai de suas matrizes outro fôlego daquilo que poderia nos parecer exaurido e nos surpreende com a determinação de quem não esmorece diante da montanha. Ao contrário, ressalta percepções que se mostram inesgotáveis, possibilidades que só o tempo pode projetar sobre a fatura do verdadeiro artista. E nessa construção anti-monotonia está a façanha maior de seu projeto de intrínseca disciplina: resistir aos apelos do contraditório e retificar cada demão com a segura camada de confiança de quem sabe aonde quer chegar. Em uma sucessão de formas e cores muito próximas umas das outras é que nos deparamos com a poética vigorosa centrada então no arranjo que aquelas recebem do artista. Vemos uma profusão genuína de novos símbolos gráficos que, em um diálogo aberto com a teoria do símbolo de Edgar Morin, marcam distinções e conexões sobre a representação do que está além da realidade percebida ou memorizada. Essa força irresistível que move o artista é o que se procura enxergar diante de uma obra de arte. No caso de Julio Castro percebemos antes seu imaginário que sua técnica, ressaltando seus indícios de trajetória apenas os elementos constitutivos do seu trabalho. Ele nos faz refletir sobre a condição de cada um de nós diante das intempéries em que podemos escolher entre ser a mão que move a pedra ou simplesmente a pedra que rola sem destino. Osvaldo Carvalho Rio de Janeiro, outubro de 2012 |
Agregados O conjunto de obras aqui apresentado surge de um processo de trabalho no qual Julio Castro partiu do desenho e associou a monotipia para aproximar-se da pintura. Em seus desenhos iniciais, formas orgânicas – as mesmas “formas-frutos”presentes nesta série – articulam-se a outras, geométricas de caráter “mecânico”, gerando imagens de oposição visual que transmitem a sensação de movimento bloqueado, interrompido. No desenvolvimento da pesquisa, o artista opta por libertar o movimento: elimina o fator mecânico e multiplica o orgânico, operando pela monotipia numa abordagem pessoal, autoral, que o situa no campo dos procedimentos da pintura. A composição da imagem se dá num processo de impressões sucessivas sobre um mesmo e único suporte – papel ou voil – onde este perde a neutralidade na primeira impressão e, nas impressões seguintes, passa a funcionar como fonte de informação para novas transformações. Matrizes das diferentes “formas-frutos”são transferidas numa organização mutável, em que a ocupação do plano vai se dando por encaixes, deslocamentos de posição, construção de camadas, gerando o corpo do trabalho – um “corpo-cor”. Cada impressão incorpora os resíduos da anterior, a sobreposição das camadas de tinta vai transformando o plano numa matéria real, volumétrica, onde os espaços vazios colaboram para a sensação de corporeidade da imagem. As sucessivas reimpressões levam ao extremo a operação de gravar, rompendo com a lógica da gravura e instaurando um espaço [como o] pictórico. Neste contínuo acréscimo de informação de formas e cores ao conjunto, o artista coloca em movimento um jogo de repetição, diferença e multiplicação em escala, que o leva também ao limite do esforço físico. Uma relação com o corpo que atinge o observador através do movimento inscrito na obra, cuja sensação de que as formas “circulam” e “saltam” para o espaço tridimensional como que confirma a aspiração da pintura de recriar o espaço real. Tanto no sentido do crescimento vertical e horizontal do trabalho, quanto na constituição da transparência através do voil que confunde a percepção dos espaços vazios da obra com o espaço ambiente, há uma busca de superar a escala humana em direção ao espaço/tempo real e ilimitado que o corpo não abarca. Fabiana Éboli Santos |