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Ado Malagoli
- Texto de apresentação da primeira exposição da artista - Galeria Espaço,  Porto Alegre, maio de 1966


Luiz Inácio Medeiros
- "Força e Coerência"
crítica veiculada no jornal Correio do Povo em função de exposição da artista na Galeria do Centro Comercial de Porto Alegre, 29 de outubro de 1981


Angelica de Moraes
Grupo Gaúcho: pintura. São Paulo: Centro Cultural Bonfiglioli, 1985

Carlos Scarinci
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Um animal debaixo da pele, fora da jaula
​crítica veiculada no jornal Diário do Sul em função da mostra da artista "Autorretrato dentro da jaula" no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 1987

Denise Mattar
para a exposição "Trabalho Manual" | Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, Rio de Janeiro, julho de 2004


Rubens Pileggi Sá
- "Entre extremos"
para a exposição e álbum "Procura-se" | Estudio Dezenove, julho de 2012

Julio Castro
-
​para a exposição "Uma Troca: teu olho, minha mão" | Multipalco do Theatro São Pedro, Porto Alegre, março de 2018
 


Ado Malagoli, maio de 1966

A Galeria Espaço lança, com a presente mostra um nome inteiramente novo, Magliani, que, embora muito jovem ainda, é dona de certa modalidade artística bastante significativa, cuja figuração é de um lirismo inquietante. Suas composições, com luas mórbidas a se destacarem sôbre fundos e riscados de frases poéticas, apresentam estranhas e esguias figuras humanas reduzidas a pura expressão formal. Possuindo uma visão própria da realidade sensível, renuncia aos efeitos superficiais, à atração fácil do colorido pujante e decorativo e difunde em suas obras certo encanto espiritual de transcendente simplicidade.

Magliani é uma criatura simples. Encara a vida de maneira espontânea, sem conter, portanto, os seus anseios de expansão e comunicabilidade, cujos resultados artísticos, como seus versos, parece brotarem de sua alma.

A Galeria Espaço resolveu selecionar uma série de pinturas dessa artista visando estimular um talento em formação e, ao mesmo proporcionar ao público amante das artes a visão de um conjunto de obras que tendem a se valorizar, graças ao indiscutível mérito artístico de sua autora.
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A espera do canto,1964 óleo sobre tela 27X62cm Col Glae Macalós

Força e Coerência

O expressionismo, às vezes quase abstrato, de Iberê Camargo é uma exceção no panorama de pintura entre nós, gaúchos. Sempre fomos bastante acomodados face à onda de tentativas e "ismos" que vogaram pelo mundo nas últimas décadas. Talvez, mesmo nossa formação social ligada ao campo, à agricultura e à pecuária, e a nossa grande classe média, urbana e modesta, somente há pouco, ligada à indústria, setor mais dinâmico da economia, explique um certo gosto pelo clássico e pelo acadêmico. Assim é com grande prazer estético que se visita uma mostra como a de Maria Lídia Magliani na Galeria do Centro Comercial de Porto Alegre.

São dezenove desenhos sobre papel de grande formato em lápis de cor, nanquim e pastel, todos de excelente composição, onde o traço amadurecido da artista coloca sua visão do homem, num antilirismo com sofrimento e rigor. As figuras sempre presentes em seu trabalho, são distorcidas e perturbam. Perturbam, menos pelo fato de terem sido distorcidas do que pelo resultado final obtido que implica num distanciamento da beleza acadêmica. Na caricatura , a distorção acontece com um objetivo de tornar ridículo ou acentuar traços do personagem. Magliani não foge à denúncia que no século passado celebrizou Daumier, de quem se poderia dizer que é uma discípula pelos pontos de contato que tem. Ambos  trabalharam na imprensa e na pintura.

A evolução notável da obra da artista tem seu ponto forte na coerência. Crítica mordaz e quase candente da situação da mulher e da sociedade de consumo, seu trabalho tem a força das verdades inteiras e seu expressionismo é filho direto do realismo. Afinal, a decadência e a hipocrisia não são belezas. O desenho, especialmente nos trabalhos com lápis de cor, tem traços tão violentos que parecem resultado de um processo de raiva, sem perder a intencionalidade que caracteriza certos poemas de Garcia Lorca.

Elemento novo, nesta exposição são os "embrulhos", onde a figura não aparece, apenas é adivinhada sob o invólucro. Evidencia claramente numa metáfora, a denúncia que, há tempos, a artista faz da desumanização, da transformação em objeto do homem do nosso tempo. Especialmente, nesses trabalhos, a utilização do branco do papel intensifica o efeito dramático do traço e a morbidez da cor. A composição é equilibrada, de uma desenhista que sabe ocupar o espaço.

Os "retratos falados" são igualmente uma busca do movimento e da voz. Alguns lembram mesmo a célebre litografia de Edward Munch, "O Grito", onde todos os traços parecem reforçar a voz muda dos personagens. (Retratos falados - São Paulo - julho 1981). Eles de certo modo revelam o impacto que a dura civilização de uma megalópole como São Paulo produziu na artista. Desde que deixou a ilustração da Folha da Manhã e Porto Alegre, Magliani não alterou sua postura, mas revela, talvez, uma feitura mais intelectualizada de seu trabalho, mas nem por isso menos terrível. "Retratos falados", títulos de vários trabalhos como a própria palavra escolhida diz, tem a ver com a identidade, tão difícil de se encontrar numa cidade grande.

Apesar de não conhecermos, lamentavelmente, nenhum exemplo de sua pintura recente, fica-nos a impressão de que seu trabalho deve ter ganho com o despojamento. No início, ao final dos anos 60, apesar de pesada, sua pintura ainda conservava um lirismo vagamente erótico. Alguns versos, às vezes, estavam escritos no fundo de seus quadros quase pretos. Mais adiante a pintura foi clareando, passou por uma fase de utilização da colagem com material de imprensa e um discreto conteúdo sócio-político para mais recentemente, chegar a uma fase de cores fortes e pintura mais limpa e despojada. A exposição de agora não chega a ser uma fase nova, apenas anunciada, que, mesmo assim mantém aquela coerência de princípios que a pintora sempre teve. Ela certamente tem algo a nos dizer e o faz de forma fluente. Numa época em que tantos caminhos da arte são descaminhos, ela continua a não conceder a comercialismos que poderiam tornar mais fácil sua caminhada, mas talvez mais difícil olhar-se ao espelho pela manhã. É a coerência e a força que tornam quase emocionante a visita a uma exposição de alta qualidade técnica como essa.

Luiz Inácio Medeiros, outubro de 1981
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"Maria Lídia Magliani faz uma pintura de cores vibrantes e pincelada solta, gestual, de onde surgem, com enorme liberdade de forma, os personagens urbanos que escolheu retratar desde há muito tempo - 15 anos - explorando com eles sempre novas sutilezas, tanto na superfície visual da tela como nos caminhos para o nosso olhar interior. Dilacerada e trágica, a arte de Magliani discute as relações humanas e suas dificuldades. O universo de sua pintura é a multidão anônima das ruas, onde flagra as expressões e decepções das pessoas que trafegam no limite entre a submissão e a resistência. Mas também pode ser a cena contida entre quatro paredes, os impasses da afetividade onde, observa ela, ´os homens nunca se despem, nunca se entregam´. Fiel ao expressionismo durante toda a carreira, mesmo quando os modismos apontavam em outra direção, ela não fez dessa opção uma fórmula. A pintura que faz não se parece com a que fazia a alguns anos, mas todas elas guardam grande coerência".

Angélica de Morais

GRUPO Gaúcho: pintura. São Paulo: Centro Cultural Bonfiglioli, 1985.

Um animal debaixo da pele, fora da jaula

As mais antigas pinturas que se conhecem são de procissões de animais ao longo das paredes de profundas cavernas, templos vaginais na concepção de Leroi Gourhan, através das quais, talvez, se iniciassem os jovens pré históricos nos ritos sagrados, fascinação e horrores, que celebravam, revelando-os, os mistérios supremos da geração da vida. Uma das figuras femininas mais antigas (a Vênus de Laussel, c.20.000 A.C.), representa,esculpida em relevo, amplas formas de mulher nua, grandes seios pendentes, o ventre alargado, continente, receptáculo, por cima do triângulo invertido, rachado ao meio, da entrada estreita do sexo. Na mão levantada, ela traz um símbolo lunar, uma cornucópia, que revela seu ser reprodutivo, vacum, que vagaroso, mas mutável, promete, senão riqueza, alimento (prazer) e futuro. A mítica Pandora, com sua caixinha de promessas é a origem (animal?) de tudo, mas também princípio de males e sofrimentos. Na pintura de Magliani, presentemente, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Pandora, dentro da caixa, dentro da jaula (moderna), pede novamente que a libertem.
Não é fácil acompanhar o desenvolvimento emaranhado desta reflexão sobre a condição (ou os tormentos?) do feminino, na disposição algo confusa (ou propositadamente interrogativa?) que deram aos quadros da artista os organizadores do MARGS. Nem por isso a obra de Magliani perdeu seu impacto de conjunto, pois a tensa/densa atmosfera pictórica, orgânica ou carnal se podia dizer, quase que desvairia por si mesma em caos assustador. Nada de nebuloso, entretanto, e nem de impenetrável, pois o vento qua a sopra, procede de uma vontade de ordem que, embora irregular, reinstala artista e espectador, ainda que perplexos, num horizonte histórico: o da própria pintura.
Se, no início, o puro desejode encontro (dentro da noite) contrai tímido grito expressionista, logo uma linguagem próxima da metafísica de De Chirico com seus manequins inquietantes, põem em cena os emblemas ou instrumentos condicionadores do feminino. Eles parecem vir de fora, produzidos pela figura masculina que, ainda que rara, estica a brida, a corda mordaça que rasga a boca, paralisa a língua, interrompe a fala. Parece vir dele o capacete secador de cabelos (ou chupador de miolos), que definem a figura da mulher, que logo, mais sutil, vai empunhar os instrumentos da feminilidade mesma, sutiãs, calças ligas, que suportam o corpo que se marca em dobras, que já se desfaz em vincos, gorduras. Mas este corpo que se surrealiza, na medida  em que manequim gordo, desglamourizado, é feito coisa de uso, “ela”, “brinquedos de armar”, “objetos em cena”, ao mesmo tempo se fragmenta, sofre distorções cubistas que permite a Magliani acrescentar-lhe as colagens de outros emblemas instrumentais.
Além das peças íntimas sempre negras, há o sapato (novo?), o colar, e também a panela no lugar do ventre (função ou uso?), ou cabide que torna o corpo em prêt-à-porté escamoteável em qualquer guarda roupas. Aparentemente mais realistas, isto é com maior domínio das convenções do desenho, as figuras de Magliani na sua evolução sucessiva, impôem-lhe, assim mesmo, uma lei que lhes é própria esparramando-se, ainda que fragmentadas, pela tela, tendendo a assumir um caráter puramente matérico (que me lembra muito de longe Dubuffet), e que se converteria em galáxia amorfa não impusesse a  artista limites sociológicos à sua reflexão pictórica sobre a condição corporal da mulher. Esta condição que a vitima vai contudo, pouco a pouco, vir de dentro dela mesma. Com efeito, o caminho de Magliani parece proceder de uma reflexão social-surrealista, que pede (em que sentido?...sociais apenas?...psicológicas?) libertações da mulher, para aceitar, em seguida, uma condição existencial, originalmente constitutiva de um ser que, talvez não apenas feminino, venha a ser a humanidade toda.
Contudo, neste percurso ainda há referências a verificar. Há a dialética da cara e da máscara, tão saída do teatro em que a artista andou entretida, e talvez das gravuras de Goya cujos Los Caprichos refletem também a condição feminina, entre a sedução e a perfídia, e que destina os personagens mulheres dele a virarem bruxas, instrumentos da superstição e do obscurantismo religioso. Há aqui algo de Los desastres de la Guerra pois o corpo que Magliani insiste em apresentar-nos se mutila, no esforço de assumir-se, para se doar. Mas o que se enriquece neste percurso é, principalmente, o domínio do traço, da pincelada, da construção da figura, tudo mobilizado para expressar a grandeza e o drama do animal escondido debaixo da pele, cuja pulsão se faz cor, ataque impressionista-expressionista à tela, que torna as tonalidades fosforescentes noturnas, neon, e quase espirram ou transbordam sobre o espectador angustiado.
Magliani ainda fez experiências de figuras recortadas, entre o bi e o tridimensional, displays de propaganda virados os próprios personagens que anunciam, aproximando-se assim, da Pop Art, contudo, parece mais significativo, o encontro da pintura dela com a de Francis Bacon, esse dramaturgo da contingência carnal da criatura humana, e que tão bem soube expressar o caráter explosivo da existência, a qual se desfigura e sangra ao assumir o espaço jaula, a intransponível grade que a encarcera temporária, mas definitivamente, no seu grito solitário.
Dele, Magliani aprendeu a temporalidade que supera o símbolo, pondo em "câmara lenta" o corpo que explora, estático, tão repetidamente. Nos seus "relatos" de 1986, as figuras borram-se visualmente ao tentar acompanhar com brusquidão, nervosa, incontrolada, o movimento mais lento do tempo inexorável da existência. As figuras como que perdem os seus limites anatômicos ao se temporalizarem no gesto, ou melhor, na tentativa de fazer o animal contido na carne acompanhar o tempo de seu existir. Parece que Pandora se desmitifica, historizando os instrumentos da sedução para assumir, ainda que sozinha, por cima da eternidade, um tempo animal, felino e humano que talvez lhe permita aceitar parceria e prazer. Esta tentativa de leitura iconográfica da obra de Magliani para ser completa, precisaria ainda deter-se na sua produção gráfica, desenho puro ou de ilustração, que ocupa as outras duas salas do 1º andar do MARGS. Isso ultrapassa, entretanto, os limites de uma crítica de jornal. O leitor inteligente encontrará aqui elementos que o auxiliarão na visitação destas outras partes da exposição de uma artista que se envolve com a problemática do corpo...feminino.

Carlos Scarinci, 1987
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Magliani é uma artista que se entrega totalmente ao seu trabalho, sem mentiras nem concessões. Sua obra se insere numa linha expressionista e visceral, que, atualmente, é vista com reservas por uma parcela da crítica e do mercado de arte, mais afeita à obra “limpa” e conceitual.
Estruturada na força do gesto largo e das cores audaciosas, a obra de Magliani se desenvolveu durante anos num universo de figuras deformadas, envoltas numa atmosfera dramática. Um mundo de sombras, desejos ocultos, dor e desespero.
Na sua nova exposição Trabalho Manual, a artista apresenta um conjunto de obras que vem desenvolvendo desde 2001, e que, embora bastante diferente de seu trabalho anterior, guarda com ele uma profunda coerência.
“Alfabeto” vem da série “Acumulações”, na qual Magliani reunia elementos do cotidiano explorando suas múltiplas possibilidades de forma. Criando pilhas de objetos, repetidos com pequenas variações, como bules, xícaras ou bolsas, a artista acentuava o excesso que caracteriza nossa sociedade consumista. Em “Alfabeto”, Magliani isola os traços dos objetos, acumula elementos decompostos, reduz o gesto, abandona a cor – cria uma escrita enigmática em preto e branco.
Isolamento e solidão são a chave para a compreensão desta nova fase da artista. “Retratos de Ninguém” e “ Todos”, são a rigor, uma mesma série. Nela, todas as figuras trágicas e sofridas de Magliani se rendem à impossibilidade de comunicação, elas se entregam, e se tornam uma multidão de rostos – sem corpo. São rostos anônimos, que não falam, não pensam e nem sequer sofrem. Rostos diferentes mas estranhamente iguais, pequenas ilhas de medo - retratos de ninguém.
Ao recortar os rostos, quase monocromáticos, Magliani acentua sua solidão e, chega a um extremo tão dolorido, que eles se tornam paralisados – apáticos. Todos apenas assistem à vida olhando para um mesmo ponto: para nós? para o nada ? ou para uma tela de TV?
Segundo Francis Bacon uma boa pintura deve ir do olho do espectador diretamente para o seu estômago, sem passar pelo cérebro, como um soco.
É o que faz, mais uma vez, a artista Maria Lídia Magliani.

Denise Mattar, Rio de Janeiro - 2004
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Entre extremos
Visceralidade. Fico refletindo sobre esta palavra enquanto me debruço sobre as imagens que pouco a pouco são apresentadas à minha frente. São retratos. Não, não são retratos¹, são imagens do trabalho de Magliani: parecem retratos, apenas. E o que são? São pinturas e gravuras em preto e branco. Mas podem ser vistos, também, como seres deslocados, fora de seu lugar, que se juntam a coisas perdidas no meio do caminho. Bules/rostos; pano torcido/cara; objeto/pessoa. A gente vai se enchendo de coisas e as coisas estão cheias da gente. Ou, estão cheias de gente. Não é uma questão de similitude de forma. São agrupamentos quase surrealistas entre materialidades distintas. Ou colagens absurdas que só se conformam pra nos dizer sobre a inconformidade. Preto no branco. Branco no preto. Magliani é mestiça. Negra e branca. Magliani é italiana. Magliani é brasileira. Magliani, mulher, gaúcha. Pergunto sobre as cores. Ela diz que as experiências com cores são como um hiato na história da obra dela. Ela quer a contração e a expansão máxima possível do espaço. O contraste absoluto. O branco da tela e do papel onde a impressão irá marcar a imagem que ela, pacientemente, estrategicamente, faz aparecer. Faz aparecer como víscera, identidade, como modo de alguém ser o que é. Essa é Magliani: ela é sua gravura. Ela é sua pintura. Ela é ela. Atrás de tudo isso, a elaboração. Cada goiva enfiada na placa revela uma experiência de vida. Cada passada de pincel pela tela uma afirmação: sou o que sou. Mas qual o preço que se paga para manter essa afirmação? Podemos dizer que Magliani paga o preço de ser com sua própria vida, para continuar sendo o que é: artista! O que é o artista? O artista é o fora incrustado na linguagem. Como uma craca, como uma marca indelével, áspera, dura, incômoda. Quando todos tendem a ser apenas estar, consumir, passar,
Magliani grita e berra, NÃO! E continua sua longa pesquisa, tendo por companhia os fantasmas do expressionismo e as sombras pesadas e frias de sua formação no sul do país. Ainda que trabalhando bem no meio de Santa Teresa! Neste caminho sem fim, costuma sempre ouvir o eco da mesma frase: “nunca mais!²”
Nesta série, no entanto, o que aparenta ter acontecido é que, de repente, o ninguém de ontem, o retrato do anônimo bestificado que ainda conservava cor, ao se perder de seus sentidos, perdeu, também, o sentido de ser retratado. Não é mais o rosto deformado e sem expressão o que se apresenta. Há um afastamento disso, também. Aquela aparente ausência de 'alma' ainda lhe dava presença. E Magliani, ao trocar o rosto de ninguém por um bule amassado, por um pano enrolado, ou outra coisa qualquer, nos faz pensar sobre a condição imposta não mais ao tolo, ao imbecil, mas a todos nós. Pois há em todos nós o dilema que é o de não ter como fugir e, ao mesmo tempo, não poder deixar de correr. É uma ironia, porque não se trata mais questionar o indiferente com as ferramentas da diferença, mas em saber que, de alguma forma, estamos sempre a um passo de nos tornarmos aquilo que nunca poderemos ser. Somos perseguido pelo fim, mas só podemos perceber isso por uma relação de sensações de proximidade e distância e nunca pela real efetivação de tal encontro³. Talvez, por isso, o título dado por Magliani a esta série: procura-se.
Preto e branco é o trágico. A tragédia nos humaniza. E a arte de Magliani é endereçada a todos que estão cercados no meio de uma montanha de coisas, objetos, acúmulos. E essa sinalização é indicada por passagens que não podem se fixar mais nas representações e, menos ainda, na pureza das abstrações. São evocações, talvez, de mundos em trânsito que não se comprazem em revelar uma moral ou uma estética, mas o indizível.

Rubens Pileggi Sá
junho de 2012

1 A frase é remetida para o famosos paradoxo do quadro de Magritte: “Isto não é um cachimbo”.
2 Frase retirada do conto “O corvo”, de Edgar Allan Poe 
3 Nos paradoxos de Zenão de Elea, Aquiles nunca vence a tartaruga na corrida

Magliani
Uma troca: teu olho – minha mão
 
“Estar no palco me trouxe uma nova maneira de perceber o espaço que passou a fazer parte do espaço na pintura” Magliani
 
E eis que o nome de Magliani retorna ao tradicional Theatro São Pedro depois de 48 anos. Desde o longínquo ano de 1970 quando ela preencheu este palco querido dos porto-alegrenses no papel principal do musical infantil “O Negrinho do Pastoreio”, lenda gaúcha adaptada no conto de Simões Lopes Neto, com direção de Delmar Mancuso e elenco de 24 atores e músicos. Tal retorno se dá agora através de outra estreia e de outro olhar sobre seu trabalho. Não vamos tratar daquela jovem artista ainda na descoberta do mundo, com seus riscos juvenis, mas sim da artista madura, plena de seu papel e bastante envolvida com sua obra plástica.
O recorte apresentado nessa exposição situa dois momentos específicos da produção da artista. O primeiro, do período carioca compreendido entre os anos de 2004 e 2007 com obras das séries “Um de Todos”, “Retratos de Ninguém”, “Todos” e “Dançantes” e o segundo conjunto do período mineiro vivido em Tiradentes, entre 1990 e 1996, quando seu trabalho foi bastante marcado pela produção de esculturas, bem como de uma ampla série de objetos – potes – em papel machê, técnica que Magliani utilizou praticamente em toda a sua produção escultórica.
O ponto de partida para a elaboração das esculturas vem de fragmentos de madeira encontrados no seu entorno que ora suportam a peça construída, servindo de base ou parte integrante da figura, ora funcionam como estrutura interna. Possuem uma brutalidade áspera e, como nas figuras em sua pintura, o drama da existência trágica. As Alterosas, como as terras mineiras são conhecidas, influenciaram poderosamente as obras tridimensionais da artista, que apropriou-se dos tons rebaixados, afeitos ao barro das estradas, à terra-mãe, à Gaia, palheta que também impregnou a sua pintura nesse período.
Referindo-se ás séries “Retratos de Ninguém” e “Todos” Denise Mattar afirma “são a rigor, uma mesma série. Nela, todas as figuras trágicas e sofridas de Magliani se rendem à impossibilidade de comunicação. Elas se entregam e se tornam uma multidão de rostos – sem corpo. São rostos anônimos, que não falam, não pensam e nem sequer sofrem. Rostos diferentes mas estranhamente iguais, pequenas ilhas de medo - retratos de ninguém. Ao recortar os rostos, quase monocromáticos, Magliani acentua sua solidão, chegando a um extremo tão dolorido, que eles se tornam paralisados – apáticos. Todos apenas assistem à vida olhando para um mesmo ponto: para nós? para o nada ? ou para uma tela de  TV?” ¹
Na série “Dançantes”, a artista propõe ao espectador, através do grafismo, ponto focal da série, um olhar para figuras atávicas, ancestrais.  “Minha palavra é minha música, minha dança está aí; se não está claro, é porque eu não soube passar ou os outros ainda não souberam ver. Faço a minha parte e quero que aqueles que passam a conviver com o resultado me mostrem de que modo os atinge, que apresentem suas próprias conclusões. Uma troca: teu olho – minha mão”.²
Magliani produziu muito, tinha urgência. Com uma capacidade rara de atuar em várias áreas, muitas vezes simultaneamente, deixou uma obra rica e multifacetada. No teatro, na pintura, na gravura, na escultura e nas redações de jornal como ilustradora e diagramadora. Sua obra fica como a soma de uma busca incessante. Ao falecer, aos 66 anos, estava em plena atividade, revolucionando internamente seu trabalho em busca de novos desafios de linguagem ao ponto de surpreender um público mais acostumado a uma atmosfera visceral em sua produção, com seus personagens carregados de drama expressionista. Em suas últimas séries, ainda pouco conhecidas do grande público, vemos uma artista enfrentando novos paradigmas, mais lírica e numa visível ponte com seus trabalhos iniciais.      
Pude acompanhar seu trabalho nas últimas décadas quando dividimos atelier no Rio de Janeiro – o Estudio Dezenove. Com seu falecimento, obtive o apoio oficial da família para implantar o Núcleo Magliani que passa a ser um centro de referência para organização e pesquisa do seu trabalho e resulta em um arquivo documental para acesso público. Com isso, está em curso a necessária promoção e institucionalização de sua obra, abrindo caminhos para situá-la com merecimento dentro da história da arte brasileira.

Julio Castro
Rio de Janeiro, março de 2018
 

1. Denise Mattar - folder da exposição "Trabalho Manual"
Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, Rio de Janeiro, julho de 2004
2. Entrevista a João Carlos Tiburski, 
Editor do Boletim Informativo do MARGS, nº 32, jan/mar, 1987

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