3 PEÇAS MORAIS são uma trilogia de textualidade visual, na fronteira que articula texto e imagem, cuja matéria-prima de fundo é o contexto de nossa época. Ela mergulha portanto em certo pathos inevitável de costumes, comportamentos, consumos e vícios, tão preferenciais como exigidos pela normalidade ambiental, aquela regida sobretudo pela idolatria econômico-tecnológica-comunicacional, um rolo compressor do estado das coisas, que chega a almejar seu próprio êxtase de fundamentalismo. O que favorece a mitologia das maiúsculas ou então nossa conversão em bocoiós e tribufus: veja-se, o sequestro de experiências e imaginários como outro lugar comum, de perspectiva simbólica já sabotada. Como divertimento de uso prático, a ironia crítica desta tríade moral - o moto-contínuo de suas variações - também atualiza o grau de estupidez e banalização que se promove e vende como uma das belas artes de nosso tempo, (ou até como Zeitgeist, no caso, espírito), visando sempre a maior audiência. As contra-indicações de Oráculo côncavo, Bazar e Genérico são meta-poéticas de crise, composições de um acervo imagético que não deixa de ser portátil. Adolfo Montejo Navas (agosto, 2015) |
UMA POÉTICA ANGULAR Adolfo Montejo Navas Como já aconteceu com outros trabalhos sobre futebol de Lula Wanderley, quem só enxerga a bola, como apontava Nelson Rodrigues, é cego ou não sabe nada da magia deste esporte, por outra parte, tão chamado a sequestros de seu livre imaginário. As recentes notícias escandalosas da FIFA ou da CBF, ou da COMENBOL, por chamar a atenção de algumas siglas maiúsculas, sabem muito bem disto, da distorção/corrupção dos aspectos mais simbólicos deste esporte: ou seja, do imenso negociado econômico-político que a trama do capitalismo financeiro presenteia como uma parte maldita do futebol. Mas não se trata exclusivamente destas entidades coisificadoras. O esporte-rei (ainda que seja mais republicano e horizontal que este título monárquico e vertical), como fio terra sociocultural e midiático, atrai instituições, empreiteiras, governos de todo tipo, porque ele está no meio como ritual antropológico, na passagem de muitas coisas díspares, como aqui revela o artista, vinculando universos aparentemente alheios, “desapareados” como diria ele. Política, comunicação, visualidade, estão num difícil cerne estético nestas obras tão documentais e épicas, quanto contundentes e abertas como peças de linguagem. Nelas, o ritual do jogo vira outra coisa, ou melhor, seu cenário e protagonistas deriva para outro confronto, outras reverberações. Fruto em parte de um quadro histórico em falta, à deriva, em completo déficit, que falha em seu sentido político mais real e extensivo, pelo que acaba se produzindo uma situação artística de substituição da experiência real (Jacques Rancière, Nicolas Borriaud) que responde a uma política mutilada, sequestrada, quase perdida (Marco Revelli). Surpreendentemente, as artes visuais ainda elaboram seu discurso de signos no meio de um vazio que não é só representacional (político, ontológico), daí que a estética mais antenada e instigante se situe no contexto acidentado deste buraco negro indeterminado como arte relacional, de situação, em litígio, entre outras coisas. Faz parte portanto do paradoxo de uma fotografia-gambiarra de alta definição, computadorizada, a intervenção nas imagens que a cultura visual de nossa época pede cada vez mais, se não queremos ficar na idiotia semântica, ou em outras palavras, viver na obediência estético-existencial, presos às leis pródigas da mera audiência ou da cooptação dos signos. Talvez por isso, Não tudo na vida é Política e Futebol (2014) arrastra uma ironia crítica até o limite de seu título, na qual se mistura a política e a sociedade, a comunicação e a imagética, a imaginação e o imaginário. Trata-se sempre de obras-fricção, de arte em questão (o que não acostuma ser tão frequente) que inventa a sua própria fronteira: a matéria prima visual de uma poética angular que sabe atravessar a prosa do mundo, as suas arestas mais recalcadas1. Contudo, e a pesar da prática reconhecida das foto-montagens eletrônicas de Lula Wanderley, que já deu frutos emblemáticos2, esta sucinta série de situações de mestiçagem visual (sobre fotografias da Mídia Ninja e de fotógrafos turcos) volta a colocar o acento na comunhão de dispositivos e registros culturais vários, imbricando universos dissimiles, compartimentos quase contraditórios, para quem está acostumado a seguir as regras padrão, uma política reducionista da visão (também super aplicada ao futebol) que quer domesticar nossa percepção. Obviamente, é outro brasil em minúsculas o que aparece aqui, subjugado pelo Brasil em caixa alta do poder institucionalizado, que não só arrasou comunidades em favor de obras públicas oficiais como contraventou a economia pública, seu sentido ético (como o próprio Romário, já senador, denunciou em outro gol de letra, e em tempo, aqui religado à figura crítica de Mário Pedrosa). Outra paisagem portanto do Mundial do Brasil, denunciado como injustiça ou debate de outra natureza, se divisa aqui em seu litígio. Neste sentido, as imagens de Lula Wanderley -impressionado com a militarização das ruas durante as manifestações de junho de 2014 pertencem ao melhor acervo da arte crítica, aquela que não se perde em produções narcisistas nem cai em sociologismos estéticos, duas endogamias virais que se propagam com propaganda a favor não só no âmbito da comunicação quanto da própria arte. & 1Aqui se contemplam imagens controversas e verdadeiras: em Batalha, um enfrentamento policial-manifestantes no meio das quatro linhas remete à iconografia das pinacotecas (às batalhas pictóricas de Delacroix) e cenas insólitas como O escanteio, com dois policiais, manfestante, garrafas, objetos, bola e um cachorro saltam pelos ares juntos às noções de surrealismo, documento, reportagem e absurdo, assim como a falta com barreira policial, além de icônica e dramática, destila esse humor que salva tudo de qualquer posição monolítica. Aparte, o vídeo-poema A Estratégia Angular de um Poema, que cruza os universos elaborados de jogo do Barcelona (o pattern futebolístico da época dourada de Pep Guardiola) e o livro A Ave (1956). Um achado lírico, uma associação ousada mas feliz, pois o território das angulações, o curso de diagonais em movimento de ambas referências se acasalam perfeitamente saltando as cronologias fechadas. O futebol de toque, de passe continuo e desmarque -uma dança coletiva- mantém afinidades eletivas -sintonia de reinvenção- com a geometria livre e deambulatória das páginas do pioneiro livro-poema de Wlademir Dias-Pino, sempre uma obra em estado de nascente, inaugural. 2 Caso da série cinematográfica (O artista é um impostor / O artista se adapta ao mundo - Breve nos cinemas, 2007) ou do jornal produzido na época do carnaval econômico do Mensalão (Sem título, 2006) ; obras em que o artista é declaradamente uma alteridade ou uma procura, está em xeque, em suspenso, e, em suma, é um fingidor entre/com as imagens, alguém que se metamorfoseia em identidades várias como resultado de uma heteronimia artística absolutamente pós-moderna e contemporânea-; o que também responde a uma situação de conflito nas coordendas vida-mundo, sujeito-realidade, cada vez mais escorregadias. (Felizmente, com humor à prova). |