A singularidade da artista Magliani
Luis Carlos Amando de Barros
Como artista plástica, Magliani foi beber em fontes sofisticadas como Francis Bacon e Iberê Camargo. Como ser humano, essa gaúcha negra, criada por uma família de origem italiana, de quem herdou o sobrenome, nunca fez concessões para o stablishment. Tinha um radar apuradíssimo para captar a mediocridade do mundo, crítica severa das mazelas, das safadezas humanas. Produziu muita coisa, mas também não tinha lá muito jeito para negociar com galeristas de forma que esteve sempre à margem do grande mercado. Um dos seus poucos momentos de enquadramento numa galeria comercial aconteceu em 1985 já no finzinho da galeria Bonfiglioli que ficava ali na esquina da Estados Unidos com rua Augusta. Junto com artistas gaúchos, como Vasco Prado, expôs ali algumas pinturas, uma das quais eu tive o privilégio de adquirir e conservar até hoje. Ela integrou a representação brasileira na 18ª Bienal de São Paulo, expôs na histórica galeria Paulo Figueiredo e foi uma das artistas convidadas para o 18º Panorama das Artes Plásticas organizada pelo MAM-SP. No entanto, em fins de 2012, Magliani sofreu um mal súbito, um problema cardíaco, foi internada num hospital do Rio e não resistiu. Só fiquei sabendo da morte dela algumas semanas depois. Mas a lembrança da pessoa mais irreverente que eu conheci, a pessoa mais à margem da sociedade com quem convivi ficou como um selo de qualidade. Ela jamais fez concessões nem em sua vida pessoal, tão pouco em seus trabalhos. O último encontro que tive com ela foi na rua Paim, área central de Sampa. Ainda antes de a rua Paim ter sido invadida pelas incorporadoras que viram ali um bom filão, que vai desembocar na 9 de Julho, uma rua ocupada por casas velhas e cortiços. Pois foi num dessas casas já razoavelmente deterioradas que encontrei Magliani pela última vez. Eu queria fotografá-la, éramos amigos há tantos anos e eu ainda não tinha feito as fotos que gostaria. Ficamos ali longas horas, com sua contumaz irreverência, me contou dos vizinhos, alguns travestis, eu via água escorrendo pelas paredes, Magliani me dizia que isso era assim mesmo. Me mostrou trabalhos novos, me deu alguma coisa de presente. A certa altura, saímos para tomar um café, fomos até o shopping Frei Caneca, sentamos ali numa dessas casas de café meio chic e ficamos ali longas horas, só não ficamos mais porque ali não podia fumar e ela não ficava longos intervalos sem o cigarro. Quem viu as fotos depois gostou, sabia que ali estava a Magliani, com aqueles seus cabelos espetados, meio black, meio desarrumado mesmo. Nunca mais a vi depois desse encontro, nos falamos algumas vezes por email, mas menos do que no passado. Sabia que ela andava conversando muito com nosso amigo em comum, o jornalista Eduardo San Martin, nosso gaúcho em comum. Não me choco mais com a notícia de mortes, tenho perdido grandes figuras ao longo dos anos, mas soube do acidente cardíaco dela algumas semanas depois e pensei em tudo que havíamos conversado, sua impossibilidade completa de aceitar a sociedade tal como funciona. Tenho trabalhos dela, alguns muito significativos. Magliani fica para mim como o retrato do artista dos tempos ainda românticos,aquele artista que jamais fez concessão para ser aceito ou para vender suas obras. Faz parte da minha vida, não me esqueço da dignidade dela, ela tinha uma revolta por conhecer seu talento e saber que ele não era devidamente reconhecido. Morreu assim. Ao lado de alguns poucos outros colecionadores, continuarei segurando a imagem dessa mulher negra, gaúcha, pobre, irreverente, guerreira, se depender de mim, ela permanecerá.
Luis Carlos Amando de Barros
Como artista plástica, Magliani foi beber em fontes sofisticadas como Francis Bacon e Iberê Camargo. Como ser humano, essa gaúcha negra, criada por uma família de origem italiana, de quem herdou o sobrenome, nunca fez concessões para o stablishment. Tinha um radar apuradíssimo para captar a mediocridade do mundo, crítica severa das mazelas, das safadezas humanas. Produziu muita coisa, mas também não tinha lá muito jeito para negociar com galeristas de forma que esteve sempre à margem do grande mercado. Um dos seus poucos momentos de enquadramento numa galeria comercial aconteceu em 1985 já no finzinho da galeria Bonfiglioli que ficava ali na esquina da Estados Unidos com rua Augusta. Junto com artistas gaúchos, como Vasco Prado, expôs ali algumas pinturas, uma das quais eu tive o privilégio de adquirir e conservar até hoje. Ela integrou a representação brasileira na 18ª Bienal de São Paulo, expôs na histórica galeria Paulo Figueiredo e foi uma das artistas convidadas para o 18º Panorama das Artes Plásticas organizada pelo MAM-SP. No entanto, em fins de 2012, Magliani sofreu um mal súbito, um problema cardíaco, foi internada num hospital do Rio e não resistiu. Só fiquei sabendo da morte dela algumas semanas depois. Mas a lembrança da pessoa mais irreverente que eu conheci, a pessoa mais à margem da sociedade com quem convivi ficou como um selo de qualidade. Ela jamais fez concessões nem em sua vida pessoal, tão pouco em seus trabalhos. O último encontro que tive com ela foi na rua Paim, área central de Sampa. Ainda antes de a rua Paim ter sido invadida pelas incorporadoras que viram ali um bom filão, que vai desembocar na 9 de Julho, uma rua ocupada por casas velhas e cortiços. Pois foi num dessas casas já razoavelmente deterioradas que encontrei Magliani pela última vez. Eu queria fotografá-la, éramos amigos há tantos anos e eu ainda não tinha feito as fotos que gostaria. Ficamos ali longas horas, com sua contumaz irreverência, me contou dos vizinhos, alguns travestis, eu via água escorrendo pelas paredes, Magliani me dizia que isso era assim mesmo. Me mostrou trabalhos novos, me deu alguma coisa de presente. A certa altura, saímos para tomar um café, fomos até o shopping Frei Caneca, sentamos ali numa dessas casas de café meio chic e ficamos ali longas horas, só não ficamos mais porque ali não podia fumar e ela não ficava longos intervalos sem o cigarro. Quem viu as fotos depois gostou, sabia que ali estava a Magliani, com aqueles seus cabelos espetados, meio black, meio desarrumado mesmo. Nunca mais a vi depois desse encontro, nos falamos algumas vezes por email, mas menos do que no passado. Sabia que ela andava conversando muito com nosso amigo em comum, o jornalista Eduardo San Martin, nosso gaúcho em comum. Não me choco mais com a notícia de mortes, tenho perdido grandes figuras ao longo dos anos, mas soube do acidente cardíaco dela algumas semanas depois e pensei em tudo que havíamos conversado, sua impossibilidade completa de aceitar a sociedade tal como funciona. Tenho trabalhos dela, alguns muito significativos. Magliani fica para mim como o retrato do artista dos tempos ainda românticos,aquele artista que jamais fez concessão para ser aceito ou para vender suas obras. Faz parte da minha vida, não me esqueço da dignidade dela, ela tinha uma revolta por conhecer seu talento e saber que ele não era devidamente reconhecido. Morreu assim. Ao lado de alguns poucos outros colecionadores, continuarei segurando a imagem dessa mulher negra, gaúcha, pobre, irreverente, guerreira, se depender de mim, ela permanecerá.
Mário Röhnelt - Artista Visual
Porto Alegre, 25/01/2015
Quando a conhecemos pessoalmente (eu e o Milton Kurtz) nós já a conhecíamos como personagem da cultura de Porto Alegre provavelmente através das páginas de algum periódico local. Eram anos 70 e o país vivia sob ditadura militar. A arte da Magliani era, sem dúvida alguma, uma obra de resistência social a gritar alto “as coisas não estão bem”. Alguns anos mais tarde Magliani negaria que sua pintura estivesse a serviço do protesto. Não importa. Eu entendi a esta negativa dela, não como traição a algum discurso rebelde, mas como um esforço para que sua pintura fosse vista como linguagem expressiva, uma sucessão de gestos fortes e contorcidos que configuravam personagens atormentados. Creio que ela gostaria que assim fosse descrito o seu trabalho. Como que almejando falar de uma condição humana que extrapola a mesquinhez do dia-a-dia . Que sua obra fosse uma declaração universal (e o é certamente).
Alguns anos mais tarde, no início dos anos 80, eu e o Milton a procuramos em São Paulo. Magliani gentilmente nos ciceroneou por algumas galerias, uma das quais trabalhava com a obra dela. Para nós que estávamos começando Magliani tinha “chegado lá”. Tinha se libertado do provincianismo. Engano nosso. Vimo-nos esporadicamente ao longo dos anos. Cada vez com menos frequência e Magliani continuava heróica e firme enfrentando a precariedade da sua vida e de um sistema cultural com capacidade bastante limitada para reconhecer seus artistas.
Que eu tenha usado o termo “heróica” certamente Magliani não concordaria. Porque ela, para mim,era uma pessoa low profile, discreta.
Me perdoa Magliani querida, de onde estiver, mas poxa, é que tu enfrentastes muita coisa: ser mulher, negra e artista plástica. Tenho que reconhecer em ti o talento, mas também a força heróica.
Porto Alegre, 25/01/2015
Quando a conhecemos pessoalmente (eu e o Milton Kurtz) nós já a conhecíamos como personagem da cultura de Porto Alegre provavelmente através das páginas de algum periódico local. Eram anos 70 e o país vivia sob ditadura militar. A arte da Magliani era, sem dúvida alguma, uma obra de resistência social a gritar alto “as coisas não estão bem”. Alguns anos mais tarde Magliani negaria que sua pintura estivesse a serviço do protesto. Não importa. Eu entendi a esta negativa dela, não como traição a algum discurso rebelde, mas como um esforço para que sua pintura fosse vista como linguagem expressiva, uma sucessão de gestos fortes e contorcidos que configuravam personagens atormentados. Creio que ela gostaria que assim fosse descrito o seu trabalho. Como que almejando falar de uma condição humana que extrapola a mesquinhez do dia-a-dia . Que sua obra fosse uma declaração universal (e o é certamente).
Alguns anos mais tarde, no início dos anos 80, eu e o Milton a procuramos em São Paulo. Magliani gentilmente nos ciceroneou por algumas galerias, uma das quais trabalhava com a obra dela. Para nós que estávamos começando Magliani tinha “chegado lá”. Tinha se libertado do provincianismo. Engano nosso. Vimo-nos esporadicamente ao longo dos anos. Cada vez com menos frequência e Magliani continuava heróica e firme enfrentando a precariedade da sua vida e de um sistema cultural com capacidade bastante limitada para reconhecer seus artistas.
Que eu tenha usado o termo “heróica” certamente Magliani não concordaria. Porque ela, para mim,era uma pessoa low profile, discreta.
Me perdoa Magliani querida, de onde estiver, mas poxa, é que tu enfrentastes muita coisa: ser mulher, negra e artista plástica. Tenho que reconhecer em ti o talento, mas também a força heróica.
Magna Sperb - Artista Plástica
Magliani para sempre
Pelos idos de 1986 me apaixonei pela arte da Magliani, sua pintura de manchas fortes, soltas, rebeldes me emocionava demais. Ia à Galeria Gestual só para vê-la por horas e horas, até que o Carlos Gallo (proprietário da galeria em Porto Alegre) me convenceu a adquiri-la em suaves prestações de professora estadual. Cheguei em casa feliz da vida e coloquei na parede minha primeira Magliani, um incrível rosto azul. Mas meu filho Gabriel com menos de dois anos olhava para o quadro e chorava sem parar, na minha paixão pelo desenho e pela cor, não havia notado a agressividade da pintura. Desolada e dividida entre dois amores, meu filho e a pintura, voltei à Gestual, para devolver o quadro. Depois de um tempo recebi uma ligação do Gallo dizendo que havia encontrado uma Magliani mais alegre para mim! Hoje, já mudei de casa e de cabeça muitas vezes, já me apaixonei por diferentes artes e já adquiri muitos outros artistas, mas aquela Magliani me acompanha sempre e me emociona toda vez que eu a olho, porque resume aquilo que eu acredito: uma arte precisa acima de tudo te encantar, te envolver, mexer contigo e pode ser bela e decorativa sem deixar de ter força e personalidade!
Magliani para sempre
Pelos idos de 1986 me apaixonei pela arte da Magliani, sua pintura de manchas fortes, soltas, rebeldes me emocionava demais. Ia à Galeria Gestual só para vê-la por horas e horas, até que o Carlos Gallo (proprietário da galeria em Porto Alegre) me convenceu a adquiri-la em suaves prestações de professora estadual. Cheguei em casa feliz da vida e coloquei na parede minha primeira Magliani, um incrível rosto azul. Mas meu filho Gabriel com menos de dois anos olhava para o quadro e chorava sem parar, na minha paixão pelo desenho e pela cor, não havia notado a agressividade da pintura. Desolada e dividida entre dois amores, meu filho e a pintura, voltei à Gestual, para devolver o quadro. Depois de um tempo recebi uma ligação do Gallo dizendo que havia encontrado uma Magliani mais alegre para mim! Hoje, já mudei de casa e de cabeça muitas vezes, já me apaixonei por diferentes artes e já adquiri muitos outros artistas, mas aquela Magliani me acompanha sempre e me emociona toda vez que eu a olho, porque resume aquilo que eu acredito: uma arte precisa acima de tudo te encantar, te envolver, mexer contigo e pode ser bela e decorativa sem deixar de ter força e personalidade!
Omar Barros Filho - Jornalista
17/03/2016
Magliani e eu
Nos últimos meses de 1976, eu vivia e trabalhava em S. Paulo como editor do jornal Versus, importante publicação cultural e política fundada pelo jornalista gaúcho Marcos Faerman. Fazia algum tempo que não encontrava com Magliani. Nossos últimos contatos pessoais ocorreram na redação da Folha da Manhã, da Caldas Jr., em Porto Alegre, onde ela atuava como ilustradora e diagramadora, e eu como repórter. Certo dia, Magliani surgiu do nada carregando uma carpeta plástica vermelha no velho sobrado da Rua Capote Valente, em Pinheiros, onde funcionava o Versus. Embora rápida, a visita durou o suficiente para uma conversa afetiva entre amigos que não se viam há algum tempo e também para que ela, ao final, exibisse 29 desenhos que trazia de Porto Alegre como presente, para que eu zelasse por eles e os publicasse em Versus quando julgasse apropriado. Fiquei surpreso e feliz com a generosidade de Magliani para com o jornal, que dependia de colaborações para manter sua sobrevivência sob as perseguições e restrições impostas pela ditadura.
Da coleção que me foi entregue, utilizei duas peças como ilustrações em uma matéria assinada pelo repórter Percival de Souza, intitulada “A Jaula”, um ensaio sobre a violência nas prisões. Como abertura do texto publicado em duas páginas, escrevi um “olho” que dizia: “Este repórter, há muitos anos, percorre os presídios. Hoje, ele sabe que nada é impossível. Nem as histórias que conta”. Em página dupla, as duas expressivas obras de Magliani mostravam, na primeira, uma figura humana deformada, presa por uma camisa de força e cercada por rostos também disformes atrás de uma cerca de arames. A segunda delas, no alto da página, obrigava o leitor a fixar a imagem de um homem em negro e branco, do mesmo modo aprisionado, mas trespassado por pesados alfinetes cravados na cabeça, no coração e no estômago. Versus completava seu primeiro de vida. Na redação paulistana, a passagem de Magliani foi devidamente reconhecida, ilustrando as páginas mais importantes daquela edição (Versus nº 6, págs. 30 e 31, 15/10 a 15/11, 1976).
Em maio de 1977, Versus publicou uma quarta capa de autoria de Magliani, quase um cartaz, com a palavra “CHOQUE”, gigante em magenta sobre preto. A ilustração de Magliani abusava da página, encimando três brevíssimos episódios narrados pelo psiquiatra Marcondes Farias Costa, diretor do Hospital Portugal Ramalho, em Maceió. No mesmo estilo dos desenhos anteriores, Magliani retratava asperamente uma cabeça em profunda agonia e dor, coberta por fios elétricos pretensamente terapêuticos. (Versus nº 15, pág. 44, 05/1977)
De lá para cá, 40 anos se passaram. Considero um privilégio que a vida me reservou manter íntegros estes trabalhos de Magliani, com exceção dos desenhos impressos em Versus que, muito provavelmente, desapareceram da redação para sempre quando nosso jornal foi invadido e interditado pela polícia em 1979. Daquela aventura restaram os desenhos que aqui estão reunidos e apresentados juntos pela primeira vez. São ilustrações feitas para jornais de Porto Alegre e alguns livros editados por amigos, cujos sentimentos Magliani sabia cultivar com carinho.
A variedade dos temas abordados por ela indicam como os editores dos jornais locais trabalhavam naquela época, os desenhos a serviço dos textos, complementando-os por encomenda: crime, polícia, economia, cidade, internacional e esporte eram as solicitações mais frequentes. Já as imagens produzidas para obras literárias, antes de tudo mostram os primeiros passos da artista e a profundidade de seu amor por aqueles que com ela dividiam suas melhores fantasias – Caio Fernando de Abreu, Sergio Capparelli e outros tantos talentos que surgiram ou sumiram em coletâneas poéticas e de contos. (O.L.B.F., em 17/03/2016)
17/03/2016
Magliani e eu
Nos últimos meses de 1976, eu vivia e trabalhava em S. Paulo como editor do jornal Versus, importante publicação cultural e política fundada pelo jornalista gaúcho Marcos Faerman. Fazia algum tempo que não encontrava com Magliani. Nossos últimos contatos pessoais ocorreram na redação da Folha da Manhã, da Caldas Jr., em Porto Alegre, onde ela atuava como ilustradora e diagramadora, e eu como repórter. Certo dia, Magliani surgiu do nada carregando uma carpeta plástica vermelha no velho sobrado da Rua Capote Valente, em Pinheiros, onde funcionava o Versus. Embora rápida, a visita durou o suficiente para uma conversa afetiva entre amigos que não se viam há algum tempo e também para que ela, ao final, exibisse 29 desenhos que trazia de Porto Alegre como presente, para que eu zelasse por eles e os publicasse em Versus quando julgasse apropriado. Fiquei surpreso e feliz com a generosidade de Magliani para com o jornal, que dependia de colaborações para manter sua sobrevivência sob as perseguições e restrições impostas pela ditadura.
Da coleção que me foi entregue, utilizei duas peças como ilustrações em uma matéria assinada pelo repórter Percival de Souza, intitulada “A Jaula”, um ensaio sobre a violência nas prisões. Como abertura do texto publicado em duas páginas, escrevi um “olho” que dizia: “Este repórter, há muitos anos, percorre os presídios. Hoje, ele sabe que nada é impossível. Nem as histórias que conta”. Em página dupla, as duas expressivas obras de Magliani mostravam, na primeira, uma figura humana deformada, presa por uma camisa de força e cercada por rostos também disformes atrás de uma cerca de arames. A segunda delas, no alto da página, obrigava o leitor a fixar a imagem de um homem em negro e branco, do mesmo modo aprisionado, mas trespassado por pesados alfinetes cravados na cabeça, no coração e no estômago. Versus completava seu primeiro de vida. Na redação paulistana, a passagem de Magliani foi devidamente reconhecida, ilustrando as páginas mais importantes daquela edição (Versus nº 6, págs. 30 e 31, 15/10 a 15/11, 1976).
Em maio de 1977, Versus publicou uma quarta capa de autoria de Magliani, quase um cartaz, com a palavra “CHOQUE”, gigante em magenta sobre preto. A ilustração de Magliani abusava da página, encimando três brevíssimos episódios narrados pelo psiquiatra Marcondes Farias Costa, diretor do Hospital Portugal Ramalho, em Maceió. No mesmo estilo dos desenhos anteriores, Magliani retratava asperamente uma cabeça em profunda agonia e dor, coberta por fios elétricos pretensamente terapêuticos. (Versus nº 15, pág. 44, 05/1977)
De lá para cá, 40 anos se passaram. Considero um privilégio que a vida me reservou manter íntegros estes trabalhos de Magliani, com exceção dos desenhos impressos em Versus que, muito provavelmente, desapareceram da redação para sempre quando nosso jornal foi invadido e interditado pela polícia em 1979. Daquela aventura restaram os desenhos que aqui estão reunidos e apresentados juntos pela primeira vez. São ilustrações feitas para jornais de Porto Alegre e alguns livros editados por amigos, cujos sentimentos Magliani sabia cultivar com carinho.
A variedade dos temas abordados por ela indicam como os editores dos jornais locais trabalhavam naquela época, os desenhos a serviço dos textos, complementando-os por encomenda: crime, polícia, economia, cidade, internacional e esporte eram as solicitações mais frequentes. Já as imagens produzidas para obras literárias, antes de tudo mostram os primeiros passos da artista e a profundidade de seu amor por aqueles que com ela dividiam suas melhores fantasias – Caio Fernando de Abreu, Sergio Capparelli e outros tantos talentos que surgiram ou sumiram em coletâneas poéticas e de contos. (O.L.B.F., em 17/03/2016)
Paulo Gasparotto - Jornalista
Porto Alegre, 25 de janeiro de 2016
Lembranças marcantes
* Maria Lidia Magliani estaria completando 70 anos hoje, e os amigos relembram com carinho e admiração sua trajetória. Conheci Magliani na redação da Zero Hora, e ficamos irmãos ao primeiro olhar. Foi magnífico curtir a jovem artista e diagramadora que usava blaisers de sua autoria com figuras recortadas em tecidos variados e costuradas de forma a compor uma história.
* Ela, assim como Iberê Camargo, atendia às minhas solicitações, criando obras específicas - ambos tinham em comum, temperamentos não muito moldáveis ao gosto alheio - e por isto mesmo tenho estes trabalhos muito próximos.
* Nossa cumplicidade foi absoluta e com muito humor. Ocasionalmente circulávamos na noite, muitas vezes em companhia de Renato Rosa, e minhas brincadeiras ferinas, que não caberia repetir, pois ligavam-se ao momento e à nossa fraternal amizade, ultrapassavam o que a mediocridade do vulgo considera politicamente incorreto. E vejam, Magli e Renato sempre foram considerados personalidades temíveis. Vivíamos momentos acima do bem e do mal, muito felizes.
* Dois quadros dela têm especial significado para min. O primeiro, atendendo a meu desejo, foi pintado a partir de um par de olhos de cristal retirados de uma raposa daquelas do tempo do politicamente incorreto, em que as elegantes as usavam sobre os trajes, e que vocês podem conferir abaixo. O outro, flores pretas, resultou de uma visita da pintora à minha casa quando eu colhia as raras flores, e ela fez questão de registrar.
Porto Alegre, 25 de janeiro de 2016
Lembranças marcantes
* Maria Lidia Magliani estaria completando 70 anos hoje, e os amigos relembram com carinho e admiração sua trajetória. Conheci Magliani na redação da Zero Hora, e ficamos irmãos ao primeiro olhar. Foi magnífico curtir a jovem artista e diagramadora que usava blaisers de sua autoria com figuras recortadas em tecidos variados e costuradas de forma a compor uma história.
* Ela, assim como Iberê Camargo, atendia às minhas solicitações, criando obras específicas - ambos tinham em comum, temperamentos não muito moldáveis ao gosto alheio - e por isto mesmo tenho estes trabalhos muito próximos.
* Nossa cumplicidade foi absoluta e com muito humor. Ocasionalmente circulávamos na noite, muitas vezes em companhia de Renato Rosa, e minhas brincadeiras ferinas, que não caberia repetir, pois ligavam-se ao momento e à nossa fraternal amizade, ultrapassavam o que a mediocridade do vulgo considera politicamente incorreto. E vejam, Magli e Renato sempre foram considerados personalidades temíveis. Vivíamos momentos acima do bem e do mal, muito felizes.
* Dois quadros dela têm especial significado para min. O primeiro, atendendo a meu desejo, foi pintado a partir de um par de olhos de cristal retirados de uma raposa daquelas do tempo do politicamente incorreto, em que as elegantes as usavam sobre os trajes, e que vocês podem conferir abaixo. O outro, flores pretas, resultou de uma visita da pintora à minha casa quando eu colhia as raras flores, e ela fez questão de registrar.
Angelica de Moraes - Crítica de Arte
São Paulo, 25 de janeiro de 2016
Maria Lídia Magliani. Grande artista e grande ser humano. Fazia aniversário junto com a cidade de São Paulo. Hoje, dia 25 de janeiro, estou pensando muito nela e no privilégio de tê-la conhecido. Aprendi muito com sua obra e suas atitudes diante da vida. Magli faria 70 anos se não tivesse nos deixado cedo demais. Valente, guerreira, irreverente e com um humor deliciosamente cortante, ela produziu uma obra densa, dilacerada, inconfundível, sobre a tragédia da condição humana. Pintora, desenhista, gravadora, ilustradora, ela merece ter sua obra melhor divulgada e estudada. É o que Julio Castro e o Estudio Dezenove vêm fazendo, com grande competência. Avante!
São Paulo, 25 de janeiro de 2016
Maria Lídia Magliani. Grande artista e grande ser humano. Fazia aniversário junto com a cidade de São Paulo. Hoje, dia 25 de janeiro, estou pensando muito nela e no privilégio de tê-la conhecido. Aprendi muito com sua obra e suas atitudes diante da vida. Magli faria 70 anos se não tivesse nos deixado cedo demais. Valente, guerreira, irreverente e com um humor deliciosamente cortante, ela produziu uma obra densa, dilacerada, inconfundível, sobre a tragédia da condição humana. Pintora, desenhista, gravadora, ilustradora, ela merece ter sua obra melhor divulgada e estudada. É o que Julio Castro e o Estudio Dezenove vêm fazendo, com grande competência. Avante!
Renato Rosa - Marchand
Rio, 25 de janeiro de 2016
Dia 25 de janeiro ela completaria 70 anos. Não pode esperar, não lhe garantiram esse prazo final. Nossa, como perdemos em risos e alegria que repartiríamos, nós dois, loucos aquarianos como sempre fomos!!! Mas a resignação nos obriga a viver com uma metade, com o que ficou, seu legado é sua obra. Grave, profunda, assustadora, de difícil "degustação", fel, amargura, desarvoradora, incomodativa, e ao mesmo tempo, linda, plena, íntegra. Como eu sinto, como profundamente sinto a ausência física da minha irmã da vida, a pintora MAGLIANI, sim, assim maiúscula como sempre poderemos escrever livremente seu nome. Que mulher frágil que doçura, que delicadeza, que fragilidade, tudo o que escondia-se naquela mulher mignon, elegante, que costurava, criava suas próprias roupas e bolsas. Mulher, como mulher oprimida, negra, como negra marcada, segregada, mas nada disso a perturbava, sua força e brilho superavam toda e qualquer adversidade. Minha irmã da vida preferida. Saudade, muita. Um beijo.
Rio, 25 de janeiro de 2016
Dia 25 de janeiro ela completaria 70 anos. Não pode esperar, não lhe garantiram esse prazo final. Nossa, como perdemos em risos e alegria que repartiríamos, nós dois, loucos aquarianos como sempre fomos!!! Mas a resignação nos obriga a viver com uma metade, com o que ficou, seu legado é sua obra. Grave, profunda, assustadora, de difícil "degustação", fel, amargura, desarvoradora, incomodativa, e ao mesmo tempo, linda, plena, íntegra. Como eu sinto, como profundamente sinto a ausência física da minha irmã da vida, a pintora MAGLIANI, sim, assim maiúscula como sempre poderemos escrever livremente seu nome. Que mulher frágil que doçura, que delicadeza, que fragilidade, tudo o que escondia-se naquela mulher mignon, elegante, que costurava, criava suas próprias roupas e bolsas. Mulher, como mulher oprimida, negra, como negra marcada, segregada, mas nada disso a perturbava, sua força e brilho superavam toda e qualquer adversidade. Minha irmã da vida preferida. Saudade, muita. Um beijo.
Guilherme Paz - Colecionador
Nova Iorque, janeiro de 2015
Conheci Magliani espevitada, jovenzinha, de 20 e poucos anos. Nunca me perguntei o que ela achava de mim, um fedelho que se interessava por Artes Plásticas. Sei que um dia dei no atelier e residência dela, em Porto Alegre, ali na Avenida Independência, não longe de onde eu morava. Encantei-me numa tela - agressivamente pintada (para a época) de mulher gorda seminua, e a adquiri. Na época, mesada de adolescente dava para comprar arte!
Anos a fio, sempre nos avistávamos nos eventos das artes porto alegrenses. Em geral eu estava em companhia de alguém, conversava com Magliani mais socialmente.
Corta.
Pouco depois da virada do milênio, eu passeava por Tiradentes, Minas Gerais, em companhia de amigos estrangeiros, a quem eu ciceroneava pelo Brasil. De repente, entra aquela negra estabanada no bar onde estávamos. Ela dá uma paradinha casual próximo de nossa mesa. Levanto-me e cumprimento-a: “Oi, Magliani. Lembras de mim?” Os dois nos estatelamos, afinal fazia mais de 20 anos que não nos víamos. Ganho imediatamente infinitos pontos no conceito de meus amigos, que declaram nunca terem pensado que eu conhecia alguém negro. (Talvez efeito de meus anos por Viena, Áustria?) Magliani convida-nos para passarmos pelo Centro Cultural local, onde ela participa de uma exposição coletiva. Em poucos minutos estamos lá. Vejo que o trabalho dela, que muito escandalizava no início, tinha se tornado completamente lírico; combinava sem problemas “com a cor do sofá” - em palavras que teriam sido dela.
Tentamos trocar endereços e telefones, notamos que não é realmente o forte de nenhum dos dois. Dou a ela o que tenho, ela me dá o de Julio Castro, “Ele sempre sabe por onde eu ando.”
(Estou ali de passagem, tudo é grande ou emoldurado, assim que arrebato a peça mais viável do lote: uma pequena BOLSA, trançada com fitas de videocassete recicladas! A qual presenteei a uma amiga manequim parisiense, que a usa com frequência, sempre recebendo comentários).
Branco em minha memória. Não sei como fiquei sabendo, há poucos anos, que Magliani estaria de artist in residence em Bruxelas. Comunico-me imediatamente com ela por email. Estou morando em Amsterdam, fica pertinho, um passeio de fim de semana, se não de dia. Combinamos encontro. Apareço no vernissage da transadíssima galeria do Jeu de Balle e fazemos programas variados no sábado e domingo. Ela tornara-se uma senhora quase distinta! Declarando, a rir, que “depois de velha tinha virado artista pop”. Analiso surpreso os calmíssimos trabalhos da mostra, nos quais reconheço traços da “velha” Magliani, encharcados de uma bonachice que ela nunca tivera.
Corta.
Magliani inventa de morrer. Estarrecido e isolado em Amsterdam, não sei como reagir. Escrevo a amigos no Brasil. Alguns dias depois, configura-se a situação de penúria em que ela deixara este planeta. A gente sempre soubera disso, mas escolhera relevar a um segundo plano…
Eu adoraria encerrar este texto com grandes tratados estéticos a respeito de seu trabalho, mas o que me ocorre é o que uma amiga, artista holandesa, disse a respeito de Magliani - a qual jamais conhecera - quando narrei as circunstâncias de seus últimos anos: “Potencialmente a última artista boêmia deste planeta”.
Nova Iorque, janeiro de 2015
Conheci Magliani espevitada, jovenzinha, de 20 e poucos anos. Nunca me perguntei o que ela achava de mim, um fedelho que se interessava por Artes Plásticas. Sei que um dia dei no atelier e residência dela, em Porto Alegre, ali na Avenida Independência, não longe de onde eu morava. Encantei-me numa tela - agressivamente pintada (para a época) de mulher gorda seminua, e a adquiri. Na época, mesada de adolescente dava para comprar arte!
Anos a fio, sempre nos avistávamos nos eventos das artes porto alegrenses. Em geral eu estava em companhia de alguém, conversava com Magliani mais socialmente.
Corta.
Pouco depois da virada do milênio, eu passeava por Tiradentes, Minas Gerais, em companhia de amigos estrangeiros, a quem eu ciceroneava pelo Brasil. De repente, entra aquela negra estabanada no bar onde estávamos. Ela dá uma paradinha casual próximo de nossa mesa. Levanto-me e cumprimento-a: “Oi, Magliani. Lembras de mim?” Os dois nos estatelamos, afinal fazia mais de 20 anos que não nos víamos. Ganho imediatamente infinitos pontos no conceito de meus amigos, que declaram nunca terem pensado que eu conhecia alguém negro. (Talvez efeito de meus anos por Viena, Áustria?) Magliani convida-nos para passarmos pelo Centro Cultural local, onde ela participa de uma exposição coletiva. Em poucos minutos estamos lá. Vejo que o trabalho dela, que muito escandalizava no início, tinha se tornado completamente lírico; combinava sem problemas “com a cor do sofá” - em palavras que teriam sido dela.
Tentamos trocar endereços e telefones, notamos que não é realmente o forte de nenhum dos dois. Dou a ela o que tenho, ela me dá o de Julio Castro, “Ele sempre sabe por onde eu ando.”
(Estou ali de passagem, tudo é grande ou emoldurado, assim que arrebato a peça mais viável do lote: uma pequena BOLSA, trançada com fitas de videocassete recicladas! A qual presenteei a uma amiga manequim parisiense, que a usa com frequência, sempre recebendo comentários).
Branco em minha memória. Não sei como fiquei sabendo, há poucos anos, que Magliani estaria de artist in residence em Bruxelas. Comunico-me imediatamente com ela por email. Estou morando em Amsterdam, fica pertinho, um passeio de fim de semana, se não de dia. Combinamos encontro. Apareço no vernissage da transadíssima galeria do Jeu de Balle e fazemos programas variados no sábado e domingo. Ela tornara-se uma senhora quase distinta! Declarando, a rir, que “depois de velha tinha virado artista pop”. Analiso surpreso os calmíssimos trabalhos da mostra, nos quais reconheço traços da “velha” Magliani, encharcados de uma bonachice que ela nunca tivera.
Corta.
Magliani inventa de morrer. Estarrecido e isolado em Amsterdam, não sei como reagir. Escrevo a amigos no Brasil. Alguns dias depois, configura-se a situação de penúria em que ela deixara este planeta. A gente sempre soubera disso, mas escolhera relevar a um segundo plano…
Eu adoraria encerrar este texto com grandes tratados estéticos a respeito de seu trabalho, mas o que me ocorre é o que uma amiga, artista holandesa, disse a respeito de Magliani - a qual jamais conhecera - quando narrei as circunstâncias de seus últimos anos: “Potencialmente a última artista boêmia deste planeta”.
Ivo Bender - Diretor Teatral
maio de 2013
Conheci Maria Lídia Magliani em meados da década de 1960. Eu lecionava, à noite, num ginásio municipal, no bairro do Sarandi. A irmã de Maria Lídia, Gracinha, era minha aluna e foi por meio dela que comprei um quadro da artista. Era uma pintura em cores lutuosas e mostrava um corpo feminino. Na base da pintura havia uma inscrição feita a estilete na tinta fresca. Dizia “Além de ser a pedra, a flor”.
Tornamo-nos amigos, Magliani e eu, e em 1972, trabalhamos juntos. Eu estava dirigindo Antígona, de Sófocles. O grupo era um all star cast: Caio Fernando Abreu, Romanita Disconzi, Vaniá Brown e Alba Lunardon, entre outros nomes. Para interpretar Tirésias, o adivinho cego, convidei Magliani. Minha ideia era compor o Adivinho como um vidente de candomblé. Magliani aceitou a incumbência e logo percebi o acerto da escolha.
A peça foi encenada sobre um longo tapete vermelho, no espaço sagrado de um templo Rosa Cruz. Magliani, como atriz, era intuitiva e muito disciplinada. Sua figura e interpretação foram o momento mais impactante do espetáculo.
Magliani era assim: transitava tranquila e eficiente das artes plásticas ao teatro, passando pelo canto nas rodas de amigos. Esse deslocar-se no âmbito das artes teve sua correspondência na vida. Escolhendo a rosa-dos-ventos como mapa, Magliani viveu em diferentes cidades. Era como se, cigana andarilha, a pintora buscasse em diferentes espaços e atmosferas a energia criativa que sempre a caracterizou. Os tons escuros presentes no começo de sua carreira sempre se fariam presentes, mesmo quando a cor passou a lhe ocupar as telas. Já suas figuras humanas aparecem lesadas e muitas vezes animalizadas. Feridas de morte pela vida, parece não haver saída para elas. No universo em que estão imersas não há redenção. Assim, é possível afirmar que a pintura de Magliani é a crônica pictórica da desesperada insignificância humana, da miséria física e de um vago diabolismo.
Magliani partiu discreta e silenciosamente como viveu. Sem alarde, sem fazer o menor ruído, saiu na ponta dos pés. Deixou-nos, porém, um legado precioso: sua obra preenche o vazio deixado e nos conforta na sua ausência.
maio de 2013
Conheci Maria Lídia Magliani em meados da década de 1960. Eu lecionava, à noite, num ginásio municipal, no bairro do Sarandi. A irmã de Maria Lídia, Gracinha, era minha aluna e foi por meio dela que comprei um quadro da artista. Era uma pintura em cores lutuosas e mostrava um corpo feminino. Na base da pintura havia uma inscrição feita a estilete na tinta fresca. Dizia “Além de ser a pedra, a flor”.
Tornamo-nos amigos, Magliani e eu, e em 1972, trabalhamos juntos. Eu estava dirigindo Antígona, de Sófocles. O grupo era um all star cast: Caio Fernando Abreu, Romanita Disconzi, Vaniá Brown e Alba Lunardon, entre outros nomes. Para interpretar Tirésias, o adivinho cego, convidei Magliani. Minha ideia era compor o Adivinho como um vidente de candomblé. Magliani aceitou a incumbência e logo percebi o acerto da escolha.
A peça foi encenada sobre um longo tapete vermelho, no espaço sagrado de um templo Rosa Cruz. Magliani, como atriz, era intuitiva e muito disciplinada. Sua figura e interpretação foram o momento mais impactante do espetáculo.
Magliani era assim: transitava tranquila e eficiente das artes plásticas ao teatro, passando pelo canto nas rodas de amigos. Esse deslocar-se no âmbito das artes teve sua correspondência na vida. Escolhendo a rosa-dos-ventos como mapa, Magliani viveu em diferentes cidades. Era como se, cigana andarilha, a pintora buscasse em diferentes espaços e atmosferas a energia criativa que sempre a caracterizou. Os tons escuros presentes no começo de sua carreira sempre se fariam presentes, mesmo quando a cor passou a lhe ocupar as telas. Já suas figuras humanas aparecem lesadas e muitas vezes animalizadas. Feridas de morte pela vida, parece não haver saída para elas. No universo em que estão imersas não há redenção. Assim, é possível afirmar que a pintura de Magliani é a crônica pictórica da desesperada insignificância humana, da miséria física e de um vago diabolismo.
Magliani partiu discreta e silenciosamente como viveu. Sem alarde, sem fazer o menor ruído, saiu na ponta dos pés. Deixou-nos, porém, um legado precioso: sua obra preenche o vazio deixado e nos conforta na sua ausência.