Ana Vitoria Mussi
onde quer que você esteja, esse é o ponto de partida
maio de 2018
onde quer que você esteja, esse é o ponto de partida
maio de 2018
ATO VISUAL (ATRAVÉS)
Adolfo Montejo Navas
Estamos quase sempre vendo as coisas através das grades das mediatizações, de malhas interpretativas, por que, a rigor, nos prometem alguma instrumentalização ontológica conveniente ou, pior, engano, o sentido como publicidade ou propaganda. A intervenção na Vitrine Efêmera de Ana Vitória Mussi toca nesse cerne delicado, se configurando numa situação espacial específica - criando um local que parece meditar-se a si mesmo explorando a sua razão de ser -, através do uso de algumas estruturas metálicas superpostas (originalmente partes de um secador de gravuras) que provocam à sua vez um olhar apurado, sintomaticamente, em estado de crise, acidentado (como já fizeram a seu modo, Cildo, Muntadas ou Raul Mourão, com situações próximas pelos elementos iconográficos e objetivos críticos). No caso, via uma textualidade visual, aqui transportada a suporte fotográfico como matéria e parte de uma instalação que mexe com nossas coordenadas espaço-temporais. De fato, o uso da frase do pensador indiano do século XII, Kabir, “Onde quer que você esteja, este é o ponto de partida” (um redemoinho verbal e conceitual), pode pertencer já ao imaginário globalizado/googlizado, mas também pode manter suas constantes vitais, reviver o conflito cultura-arte, mídia-literatura, consumo-pensamento... Aliás, a linha do horizonte da frase promete um start que não é só espacial nem temporal, mas sobretudo espiritual. Reposiciona o valor do espaço como origem, o local in situ como metáfora projetiva para outros movimentos, além do culto à velocidade. O contrário de um não lugar, por exemplo. E daí provem a tríplice potência do trabalho da artista, na inscrição de três circunstâncias do punctum escrito-fotografado-instalado: primeiramente, pela conversão do texto em imagem, numa situação perceptiva de nova leitura, ainda mais quando a frase encontra-se quase vulgarizada na web e se resiste é milagrosamente, aqui já em formato de fotografia. Além desta mudança de suporte-situação, em que a visualidade textual se contempla através de algumas grades, outra trama, também se pode reconhecer uma potência que anula aquele “arranjo” acomodado de sentido na maioria das entradas na internet e, em troca, se religa a uma inquietude primitiva, fora já da história recente e do percorrido funcional que certo cultural faz, graças à criação de uma visibilidade e significação que está em relação a outro patrimônio do comum. À possibilidade, quase quimera em nossos dias, de se questionar, de forma abissal, se o sendeiro escolhido de qualquer biografia/projeto/política resiste à prova das interrogações: se cabe então a capacidade de impromptus, a conquista da leveza do inaugural. A frase continua ecoando como uma matriz não só imagética. Se conseguimos ver através - uma poética sempre confessa da artista - na maranha iconográfica de hoje, signos livres, não neutralizados, compreenderemos melhor a imagem de Ana Vitória Mussi como um indispensável ato visual. Ao mesmo tempo, uma inquietante indagação paralela sublinha o trabalho da artista, a dúvida de que “a conquista da ubiquidade”, como dizia Paul Valéry nos finais dos anos 20, seja uma nova meta da arte, outro elán vital dela, numa dinâmica que religa espaço-tempo-imagem já de outro modo...
(Foz/16 de maio de 2018)