AO AQVI
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OUTRO AQUI (ARS MEMORATIVA) 3.684cc Adolfo Montejo Navas “Não existe lugar, apenas a representação de lugar” Charles Grivel Vivemos na decadência programada do aqui, do lugar, pela ditadura do tempo que foi engolido à sua vez pela velocidade. Esse é nosso acidente fulcral, ontológico de novo signo, e as nossas coordenadas ambientais respiram isso. Suely Farhi, paradoxalmente, faz uma homenagem a um aqui transversal - nada absoluto -, que se transforma como lugar, recinto, espaço, plataforma para inscrever. Na linha vislumbrada por Wlademir Dias Pino de inscrever no lugar de escrever - de fazer incisões na linguagem -, as palavras vêm acompanhadas de sua evanescência, apesar de seu peso físico, escavado em relevo como inscrições, em fonte romana de monumento. Melhor, anti-monumento, porque ele está mais dedicado ao vivo (aos vivos), ao que reverbera, agora, porque, no fundo, este site specific que celebra também o Estudio Dezenove e sua intrahistória - seu percurso interno mais verdadeiro - é uma lição de como a palavra visual, em sua semântica mais intersemiótica, sublinha seus significados latentes, retira a legibilidade literalizada das coisas - tarefa para outras retóricas e discursos com destinos recalcados. Aqui o gesto, que deixa pó, mantém firme sua aura poética, seu devir, apontando para suas frestas em baixo relevo, onde acontece uma figuração imaginária através da comunhão palavra-imagem - sempre um bastidor imagético característico da artista.
O texto, oito frases-variações ao redor de um aqui camaleônico, aponta para uma lacuna como parte de seu espírito. O que não está à vista, está na verdade escavado, magmaticamente, em relevo, como o negativo do que só vemos em parte delatado: seu inconsciente ótico. “Não se deve ter pressa para dar um estatuto ao que se lê” recoloca o pensador suíço citado linhas acima. Num período histórico no Brasil que interdita até o perfil da condição humana e o que se propõe é um absolutismo de quinta categoria, a instalação de Suely Farhi propõe uma obra anti-dogma pelo caráter aberto da experiência da realidade, pela liberdade na fixação do entendimento, pois como aponta um poeta visual espanhol, “na compreensão locality e non locality não se contradizem, já que a compreensão é inespacial e atemporal. O que surja num espaço e tempo dados não está sujeito a esse espaço e a esse tempo, e tão pouco a nenhum outro” (José Luis Castillejo). O trabalho de Suely Farhi devolve o ser ao presente grávido de uma razão coletiva, uma arquitetura vivencial que religa o espaço ao que ele contém submerso: às partículas, à matéria, ao vazio...Também aos prazeres, saberes, seres, destas transformações que são os caminhos nomeados, sismografados, feitos até chegar aqui: aos invisíveis. De fato, o imaterial está cantado visualmente em cada canto. O que se aciona portanto é um poema gráfico constelativo contra a clausura, através de um organograma verbal-espacial no qual estamos imersos, respirando ao uníssono outro aqui mais complexo, menos servicial e mais latente. (11/XI/2019) (Adendo) Nesta ars memorativa a Vitrine Efêmera ocupada pela artista funciona como emblema deste “monumento” aos vivos, no caso como oferenda (com materiais orgânicos simbólicos presentes, arruda e sal grosso), pois não só para além do corpo que se precisa da ordem da magia, do conjuro. Não é o entendido como negativo e seus sucedâneos (a parte maldita, a finitude, o enigma do além, etc.) o que aqui se convoca, o que aqui se simboliza, senão a importância da subtração, outra operação, e, em consequência, o reconhecimento da fragilidade e de um sensorium de proteção; em suma, a chamada perceptiva para um devir mais antenado, menos linear, mais afinado para a correspondência por extenso. |