IN CORPORE, IN ABSENTIA
Incorporada a uma ausência que se manifesta, a intervenção corporal na Vitrine efêmera de Bernardete Amorim procura um efeito físico e espiritual ao mesmo tempo. Uma situação visual na qual o esvaziado do corpo feminino suspenso, recluso, disperso e côncavo, fala de uma condição de gênero sempre na corda bamba, desde a antiguidade até agora, esse presente ainda cheio de abusos sistemáticos de poder e crimes machistas nos quatro cantos do mundo. Esse luto branco, símile de escultura em fragmentos, de ex-votos, suspende a milenária carga da história na linha de horizonte de um espaço breve, à vista, público, mas tudo o contrário de uma vitrine de moda, de glamour ou de exotismo. A beleza é sempre outra mais embaixo, mais abissal.
Se a coisificação objetual do corpo feminino pode ser associada visualmente, in extremis (de forma grotesca e perversa), a um aviltado açougue, a um desmembramento de partes selecionadas que interessam mais que o todo, essa intervenção in situ oferece, escultórica e espacialmente falando, dimensões a serem equacionadas. Reatadas, alimentadas. Preenchidas, dado o vazio e o branco como telão de fundo de silêncio. Como na época da ditadura, quando os corpos precisavam ser velados pela ausência e pelo desaparecimento, aqui a identidade feminina atinge uma condição fantasmagórica. Como se a ferida estivesse invisível, no ar, à vista.
Sentinela, como título escolhido pela artista, diz da tarefa dupla (tão sensível quanto política): do cuidar do sentir, e de vigiar o espectro exultante que gravita, qual corpus de várias peças, em uma pureza incógnita. O sentir nela traz também no nome essa vigília, esse velar. As funduras declamadas, a alusão a uma alma-corpo em xeque, revista esta obra de metafísica, de continente além das contingências. Como acontece com Louise Bourgeois ou Antony Gormley, a nossa fisicalidade é extramuros, limite, em curso de definição. Hiatos, arranjos em pós de sua natureza. Bernardete Amorim traz assim uma incorporação visual, um desejo de se fazer carne; Sentinela reporta o negativo de um positivo, uma imagética a ser revelada.
Adolfo Montejo Navas
[setembro/2023]