Entrevista a João Carlos Tiburski,
Editor do Boletim Informativo do MARGS, nº 32, jan/mar, 1987
Meu idioma é a imagem
Artistas como Thomas Mann e Picasso já disseram muitas vezes que a arte é uma poderosa arma contra a mentira, o ódio, a violência, a estupidez e a falta de dignidade do homem. A arte de Magliani pode ser definida como uma arte-arma empenhada nessa luta. Esta entrevista foi elaborada ouvindo o público que visitou a mostra Auto-retrato dentro da jaula, de Magliani, em 1987 no Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
Tiburski – Afinal, quem é a Magliani?
A maior parte do tempo me vejo como alguém em descompasso com o presente alheio. Nem sempre o que me interessa e ocupa é o mesmo que preocupa as pessoas mais próximas no momento. Isto provoca desencontros freqüentes, arestas difíceis de aparar. Mas não sei como me definir deste ou daquele jeito. Ficariam faltando muitos “eus” que não conheço, que ainda não encontrei. Não vejo nada de extraordinário nisto, suponho que aconteça com todos. Para alguns, os obstáculos são maiores ou menores, mais ou menos duradouros; os objetivos, mais ou menos definidos. Não separo a artista da pessoa. Sou toda um mesmo nó – minha escolha é pintar, não saberia como ser de outro modo. Aparentemente fiz e faço muitas outras coisas, na verdade, todas partes de uma só, a pintura. Tudo o que quero neste momento é pintar e tenho dificuldade em compreender por que é preciso falar tanto sobre uma linguagem que não pertence ao mundo da palavra. Não entendo a necessidade da palavra autenticando ou explicando a imagem, uma linguagem dependendo de outra. Acho importante quando falam sobre o que o meu trabalho move em cada um, independentemente de sua cultura ou formação. Sou eu que estou querendo perguntar, não explicar. Não sou eu que tenho as respostas, mas talvez cada um de nós encontre a sua, desde que se ouça e continue se perguntando sempre. Prefiro ouvir, saber como os demais estão vendo e saber em que sentido ou medida estou acrescentando ou não. Meu idioma é a imagem, a forma, a procura de um alfabeto próprio através da cor. O que eu penso e elaboro está no meu trabalho, o que eu tentar decodificar é redundância. Minha palavra é minha música, minha dança está aí; se não está claro, é porque eu não soube passar ou os outros ainda não souberam ver. Faço a minha parte e quero que aqueles que passam a conviver com o resultado me mostrem de que modo os atinge, que apresentem suas próprias conclusões. Uma troca: teu olho – minha mão.
Tiburski – Magliani, como foi o teu início, pintando lá no Bairro Sarandi?
Costumo ignorar as fronteiras, elas não se formam na minha cabeça e não empresto um significado especial a este ou àquele bairro, cidade, país, minha pátria é ter nascido. Sei pouco demais sobre o planeta para afirmar que pertenço a ele. Sou natural de todas as estrelas que posso ver e minha curiosidade é conhecer o outro lado delas. Ter começado a andar em Pelotas, a ler na Floresta, pintar no Sarandi, dançar nos Moinhos de Vento, expor no Menino Deus, me apaixonar na rua da Praia não são determinantes, tudo poderia teracontecido em qualquer outro lugar. Me decepcionar na rua Coronel Vicente ou na avenida São João dói do mesmo jeito. O lugar sou eu em qualquer parte, é em mim que as coisas acontecem ou esquecem de acontecer.
Tiburski – E a negritude, o feminismo e a ecologia na tua obra?
Na questão sobre a ideologia da negritude, existe uma confusão grave: o movimento não nega a cor branca nem qualquer outra, apenas afirma os direitos da raça negra ainda esquecidos, mesmo num país mestiço, e reivindica a igualdade para todas as raças. Meu trabalho expressa ou pretende expressar a mim como um todo. Logo, estão incluídas nele todas as minhas descobertas, dúvidas e preocupações – também o feminismo, a ecologia e a negritude. Estão, incluídos com todas as coisas que me formaram até aqui, mas não estou interessada em fazer panfleto de nada, não sou militante de nenhum movimento específico. Pratico minhas ideias, não gosto de proselitismo. Me interessa sempre a essência do humano, que não é divisível em credos, raças e ideologias. Ser uma pessoa de cor negra não interfere em nada na minha pintura e não entendo a sempre presente preocupação das pessoas com este aspecto. É minha vez de perguntar: por que parece tão excepcional que um negro pinte? Por que a condição racial dos artistas de cor branca nunca é mencionada? Por que sempre me perguntam como é ser negra e ser artista? Ora, é igual ao ser de qualquer outra cor. As tintas custam o mesmo preço, os moldureiros fazem os mesmos descontos e os pincéis acabam rápido do mesmo jeito para todo mundo. A diferença quem faz é a mídia. É “normal” ser branco, e, portanto, é natural que o branco faça tudo, mas, quando se trata de um negro, age como se fosse algo fantástico, um fenômeno — o macaco que pinta! Não gosto disto.
Tiburski – E o artista e a situação nacional?
Acredito que o artista plástico está convivendo com a situação nacional da mesma forma que todo mundo – mal. Sofrendo as mesmas preocupações, as mesmos inseguranças. Está apreensivo com a indefinição econômica, decepcionado com os governantes e sem ilusões em relação à Assembleia Constituinte. E não se pode negar que já se viu muitas cenas desse filme como a sucessão de pacotes e a volta triunfal da censura.
Público – Por que você não pinta paisagens?
Alguém me pergunta por que não pinto paisagens. Já pintei, sim, aquarelas, e não descarto a possibilidade de voltar a elas. Não tenho nenhum preconceito contra paisagens e paisagistas, apenas no momento estou interessada na figura humana, acho uma forma inesgotável. Para a exposição do MARGS, foram selecionados trabalhos de várias fases, onde a figura feminina está presente, mas isto não significa que eu não pesquise outras formas.
Público – Magliani, você estudou artes no exterior?
Quanto aos meus estudos, minha formação foi feita aqui, nunca estive no exterior. Meu trabalho, sim, tem viajado bastante e somente agora estou pensando em visitar outros lugares e ver coisas que foram feitas há muito tempo.
Milton Kurtz – Como entra a racionalidade no teu trabalho?
O Kurtz me indaga sobre onde entra a racionalidade no meu trabalho. Aparentemente é muito intuitivo, impulsivo mesmo, principalmente agora, quando a figura aparece mais solta, a pincelada mais livre. Acho que o racional aparece na elaboração da linguagem plástica, na escolha dos materiais, na maneira de compor os elementos no espaço e na opção por determinadas cores em detrimento de outras. O que aparece como espontâneo na minha pintura é na verdade fruto de muita elaboração plástica e gráfica. O psicológico, filosófico ou sociológico, em que muitos se prendem à primeira vista, não está para mim em primeiro plano neste momento, apenas passa pelas frestas da disciplina, o que considero muito bom, pois do contrário o resultado seria muito frio. Considero que meu trabalho é bastante aberto à interpretação de cada espectador e que cada um vai encontrar nele ou acrescentar a ele as suas prioridades. Para alguns será mais importante a discussão da linguagem em si. Para outros, a investigação da condição humana.
Armando Almeida – O visceral trágico do ser humano está sempre presente na tua obra.Afinal, Magliani, há esperanças para o homem?
Armando, por exemplo, vê no meu trabalho o mesmo visceral trágico que está presente nas suas gravuras, na carga inconfundível que ele põe na sua goiva, no seu jeito de se imprimir na madeira. E é neste agir sobre a matéria, mais do que pelo tema, que percebo nossas dúvidas. “Afinal, há esperança para os homens?” Não sei, Armando. Talvez nossa função seja continuar perguntando...
Editor do Boletim Informativo do MARGS, nº 32, jan/mar, 1987
Meu idioma é a imagem
Artistas como Thomas Mann e Picasso já disseram muitas vezes que a arte é uma poderosa arma contra a mentira, o ódio, a violência, a estupidez e a falta de dignidade do homem. A arte de Magliani pode ser definida como uma arte-arma empenhada nessa luta. Esta entrevista foi elaborada ouvindo o público que visitou a mostra Auto-retrato dentro da jaula, de Magliani, em 1987 no Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
Tiburski – Afinal, quem é a Magliani?
A maior parte do tempo me vejo como alguém em descompasso com o presente alheio. Nem sempre o que me interessa e ocupa é o mesmo que preocupa as pessoas mais próximas no momento. Isto provoca desencontros freqüentes, arestas difíceis de aparar. Mas não sei como me definir deste ou daquele jeito. Ficariam faltando muitos “eus” que não conheço, que ainda não encontrei. Não vejo nada de extraordinário nisto, suponho que aconteça com todos. Para alguns, os obstáculos são maiores ou menores, mais ou menos duradouros; os objetivos, mais ou menos definidos. Não separo a artista da pessoa. Sou toda um mesmo nó – minha escolha é pintar, não saberia como ser de outro modo. Aparentemente fiz e faço muitas outras coisas, na verdade, todas partes de uma só, a pintura. Tudo o que quero neste momento é pintar e tenho dificuldade em compreender por que é preciso falar tanto sobre uma linguagem que não pertence ao mundo da palavra. Não entendo a necessidade da palavra autenticando ou explicando a imagem, uma linguagem dependendo de outra. Acho importante quando falam sobre o que o meu trabalho move em cada um, independentemente de sua cultura ou formação. Sou eu que estou querendo perguntar, não explicar. Não sou eu que tenho as respostas, mas talvez cada um de nós encontre a sua, desde que se ouça e continue se perguntando sempre. Prefiro ouvir, saber como os demais estão vendo e saber em que sentido ou medida estou acrescentando ou não. Meu idioma é a imagem, a forma, a procura de um alfabeto próprio através da cor. O que eu penso e elaboro está no meu trabalho, o que eu tentar decodificar é redundância. Minha palavra é minha música, minha dança está aí; se não está claro, é porque eu não soube passar ou os outros ainda não souberam ver. Faço a minha parte e quero que aqueles que passam a conviver com o resultado me mostrem de que modo os atinge, que apresentem suas próprias conclusões. Uma troca: teu olho – minha mão.
Tiburski – Magliani, como foi o teu início, pintando lá no Bairro Sarandi?
Costumo ignorar as fronteiras, elas não se formam na minha cabeça e não empresto um significado especial a este ou àquele bairro, cidade, país, minha pátria é ter nascido. Sei pouco demais sobre o planeta para afirmar que pertenço a ele. Sou natural de todas as estrelas que posso ver e minha curiosidade é conhecer o outro lado delas. Ter começado a andar em Pelotas, a ler na Floresta, pintar no Sarandi, dançar nos Moinhos de Vento, expor no Menino Deus, me apaixonar na rua da Praia não são determinantes, tudo poderia teracontecido em qualquer outro lugar. Me decepcionar na rua Coronel Vicente ou na avenida São João dói do mesmo jeito. O lugar sou eu em qualquer parte, é em mim que as coisas acontecem ou esquecem de acontecer.
Tiburski – E a negritude, o feminismo e a ecologia na tua obra?
Na questão sobre a ideologia da negritude, existe uma confusão grave: o movimento não nega a cor branca nem qualquer outra, apenas afirma os direitos da raça negra ainda esquecidos, mesmo num país mestiço, e reivindica a igualdade para todas as raças. Meu trabalho expressa ou pretende expressar a mim como um todo. Logo, estão incluídas nele todas as minhas descobertas, dúvidas e preocupações – também o feminismo, a ecologia e a negritude. Estão, incluídos com todas as coisas que me formaram até aqui, mas não estou interessada em fazer panfleto de nada, não sou militante de nenhum movimento específico. Pratico minhas ideias, não gosto de proselitismo. Me interessa sempre a essência do humano, que não é divisível em credos, raças e ideologias. Ser uma pessoa de cor negra não interfere em nada na minha pintura e não entendo a sempre presente preocupação das pessoas com este aspecto. É minha vez de perguntar: por que parece tão excepcional que um negro pinte? Por que a condição racial dos artistas de cor branca nunca é mencionada? Por que sempre me perguntam como é ser negra e ser artista? Ora, é igual ao ser de qualquer outra cor. As tintas custam o mesmo preço, os moldureiros fazem os mesmos descontos e os pincéis acabam rápido do mesmo jeito para todo mundo. A diferença quem faz é a mídia. É “normal” ser branco, e, portanto, é natural que o branco faça tudo, mas, quando se trata de um negro, age como se fosse algo fantástico, um fenômeno — o macaco que pinta! Não gosto disto.
Tiburski – E o artista e a situação nacional?
Acredito que o artista plástico está convivendo com a situação nacional da mesma forma que todo mundo – mal. Sofrendo as mesmas preocupações, as mesmos inseguranças. Está apreensivo com a indefinição econômica, decepcionado com os governantes e sem ilusões em relação à Assembleia Constituinte. E não se pode negar que já se viu muitas cenas desse filme como a sucessão de pacotes e a volta triunfal da censura.
Público – Por que você não pinta paisagens?
Alguém me pergunta por que não pinto paisagens. Já pintei, sim, aquarelas, e não descarto a possibilidade de voltar a elas. Não tenho nenhum preconceito contra paisagens e paisagistas, apenas no momento estou interessada na figura humana, acho uma forma inesgotável. Para a exposição do MARGS, foram selecionados trabalhos de várias fases, onde a figura feminina está presente, mas isto não significa que eu não pesquise outras formas.
Público – Magliani, você estudou artes no exterior?
Quanto aos meus estudos, minha formação foi feita aqui, nunca estive no exterior. Meu trabalho, sim, tem viajado bastante e somente agora estou pensando em visitar outros lugares e ver coisas que foram feitas há muito tempo.
Milton Kurtz – Como entra a racionalidade no teu trabalho?
O Kurtz me indaga sobre onde entra a racionalidade no meu trabalho. Aparentemente é muito intuitivo, impulsivo mesmo, principalmente agora, quando a figura aparece mais solta, a pincelada mais livre. Acho que o racional aparece na elaboração da linguagem plástica, na escolha dos materiais, na maneira de compor os elementos no espaço e na opção por determinadas cores em detrimento de outras. O que aparece como espontâneo na minha pintura é na verdade fruto de muita elaboração plástica e gráfica. O psicológico, filosófico ou sociológico, em que muitos se prendem à primeira vista, não está para mim em primeiro plano neste momento, apenas passa pelas frestas da disciplina, o que considero muito bom, pois do contrário o resultado seria muito frio. Considero que meu trabalho é bastante aberto à interpretação de cada espectador e que cada um vai encontrar nele ou acrescentar a ele as suas prioridades. Para alguns será mais importante a discussão da linguagem em si. Para outros, a investigação da condição humana.
Armando Almeida – O visceral trágico do ser humano está sempre presente na tua obra.Afinal, Magliani, há esperanças para o homem?
Armando, por exemplo, vê no meu trabalho o mesmo visceral trágico que está presente nas suas gravuras, na carga inconfundível que ele põe na sua goiva, no seu jeito de se imprimir na madeira. E é neste agir sobre a matéria, mais do que pelo tema, que percebo nossas dúvidas. “Afinal, há esperança para os homens?” Não sei, Armando. Talvez nossa função seja continuar perguntando...