Um animal debaixo da pele, fora da jaula
As mais antigas pinturas que se conhecem são de procissões de animais ao longo das paredes de profundas cavernas, templos vaginais na concepção de Leroi Gourhan, através das quais, talvez, se iniciassem os jovens pré históricos nos ritos sagrados, fascinação e horrores, que celebravam, revelando-os, os mistérios supremos da geração da vida. Uma das figuras femininas mais antigas (a Vênus de Laussel, c.20.000 A.C.), representa,esculpida em relevo, amplas formas de mulher nua, grandes seios pendentes, o ventre alargado, continente, receptáculo, por cima do triângulo invertido, rachado ao meio, da entrada estreita do sexo. Na mão levantada, ela traz um símbolo lunar, uma cornucópia, que revela seu ser reprodutivo, vacum, que vagaroso, mas mutável, promete, senão riqueza, alimento (prazer) e futuro. A mítica Pandora, com sua caixinha de promessas é a origem (animal?) de tudo, mas também princípio de males e sofrimentos. Na pintura de Magliani, presentemente, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Pandora, dentro da caixa, dentro da jaula (moderna), pede novamente que a libertem.
Não é fácil acompanhar o desenvolvimento emaranhado desta reflexão sobre a condição (ou os tormentos?) do feminino, na disposição algo confusa (ou propositadamente interrogativa?) que deram aos quadros da artista os organizadores do MARGS. Nem por isso a obra de Magliani perdeu seu impacto de conjunto, pois a tensa/densa atmosfera pictórica, orgânica ou carnal se podia dizer, quase que desvairia por si mesma em caos assustador. Nada de nebuloso, entretanto, e nem de impenetrável, pois o vento qua a sopra, procede de uma vontade de ordem que, embora irregular, reinstala artista e espectador, ainda que perplexos, num horizonte histórico: o da própria pintura.
Se, no início, o puro desejode encontro (dentro da noite) contrai tímido grito expressionista, logo uma linguagem próxima da metafísica de De Chirico com seus manequins inquietantes, põem em cena os emblemas ou instrumentos condicionadores do feminino. Eles parecem vir de fora, produzidos pela figura masculina que, ainda que rara, estica a brida, a corda mordaça que rasga a boca, paralisa a língua, interrompe a fala. Parece vir dele o capacete secador de cabelos (ou chupador de miolos), que definem a figura da mulher, que logo, mais sutil, vai empunhar os instrumentos da feminilidade mesma, sutiãs, calças ligas, que suportam o corpo que se marca em dobras, que já se desfaz em vincos, gorduras. Mas este corpo que se surrealiza, na medida em que manequim gordo, desglamourizado, é feito coisa de uso, “ela”, “brinquedos de armar”, “objetos em cena”, ao mesmo tempo se fragmenta, sofre distorções cubistas que permite a Magliani acrescentar-lhe as colagens de outros emblemas instrumentais.
Além das peças íntimas sempre negras, há o sapato (novo?), o colar, e também a panela no lugar do ventre (função ou uso?), ou cabide que torna o corpo em prêt-à-porté escamoteável em qualquer guarda roupas. Aparentemente mais realistas, isto é com maior domínio das convenções do desenho, as figuras de Magliani na sua evolução sucessiva, impôem-lhe, assim mesmo, uma lei que lhes é própria esparramando-se, ainda que fragmentadas, pela tela, tendendo a assumir um caráter puramente matérico (que me lembra muito de longe Dubuffet), e que se converteria em galáxia amorfa não impusesse a artista limites sociológicos à sua reflexão pictórica sobre a condição corporal da mulher. Esta condição que a vitima vai contudo, pouco a pouco, vir de dentro dela mesma. Com efeito, o caminho de Magliani parece proceder de uma reflexão social-surrealista, que pede (em que sentido?...sociais apenas?...psicológicas?) libertações da mulher, para aceitar, em seguida, uma condição existencial, originalmente constitutiva de um ser que, talvez não apenas feminino, venha a ser a humanidade toda.
Contudo, neste percurso ainda há referências a verificar. Há a dialética da cara e da máscara, tão saída do teatro em que a artista andou entretida, e talvez das gravuras de Goya cujos Los Caprichos refletem também a condição feminina, entre a sedução e a perfídia, e que destina os personagens mulheres dele a virarem bruxas, instrumentos da superstição e do obscurantismo religioso. Há aqui algo de Los desastres de la Guerra pois o corpo que Magliani insiste em apresentar-nos se mutila, no esforço de assumir-se, para se doar. Mas o que se enriquece neste percurso é, principalmente, o domínio do traço, da pincelada, da construção da figura, tudo mobilizado para expressar a grandeza e o drama do animal escondido debaixo da pele, cuja pulsão se faz cor, ataque impressionista-expressionista à tela, que torna as tonalidades fosforescentes noturnas, neon, e quase espirram ou transbordam sobre o espectador angustiado.
Magliani ainda fez experiências de figuras recortadas, entre o bi e o tridimensional, displays de propaganda virados os próprios personagens que anunciam, aproximando-se assim, da Pop Art, contudo, parece mais significativo, o encontro da pintura dela com a de Francis Bacon, esse dramaturgo da contingência carnal da criatura humana, e que tão bem soube expressar o caráter explosivo da existência, a qual se desfigura e sangra ao assumir o espaço jaula, a intransponível grade que a encarcera temporária, mas definitivamente, no seu grito solitário.
Dele, Magliani aprendeu a temporalidade que supera o símbolo, pondo em "câmara lenta" o corpo que explora, estático, tão repetidamente. Nos seus "relatos" de 1986, as figuras borram-se visualmente ao tentar acompanhar com brusquidão, nervosa, incontrolada, o movimento mais lento do tempo inexorável da existência. As figuras como que perdem os seus limites anatômicos ao se temporalizarem no gesto, ou melhor, na tentativa de fazer o animal contido na carne acompanhar o tempo de seu existir. Parece que Pandora se desmitifica, historizando os instrumentos da sedução para assumir, ainda que sozinha, por cima da eternidade, um tempo animal, felino e humano que talvez lhe permita aceitar parceria e prazer. Esta tentativa de leitura iconográfica da obra de Magliani para ser completa, precisaria ainda deter-se na sua produção gráfica, desenho puro ou de ilustração, que ocupa as outras duas salas do 1º andar do MARGS. Isso ultrapassa, entretanto, os limites de uma crítica de jornal. O leitor inteligente encontrará aqui elementos que o auxiliarão na visitação destas outras partes da exposição de uma artista que se envolve com a problemática do corpo...feminino.
Carlos Scarinci, 1987
As mais antigas pinturas que se conhecem são de procissões de animais ao longo das paredes de profundas cavernas, templos vaginais na concepção de Leroi Gourhan, através das quais, talvez, se iniciassem os jovens pré históricos nos ritos sagrados, fascinação e horrores, que celebravam, revelando-os, os mistérios supremos da geração da vida. Uma das figuras femininas mais antigas (a Vênus de Laussel, c.20.000 A.C.), representa,esculpida em relevo, amplas formas de mulher nua, grandes seios pendentes, o ventre alargado, continente, receptáculo, por cima do triângulo invertido, rachado ao meio, da entrada estreita do sexo. Na mão levantada, ela traz um símbolo lunar, uma cornucópia, que revela seu ser reprodutivo, vacum, que vagaroso, mas mutável, promete, senão riqueza, alimento (prazer) e futuro. A mítica Pandora, com sua caixinha de promessas é a origem (animal?) de tudo, mas também princípio de males e sofrimentos. Na pintura de Magliani, presentemente, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Pandora, dentro da caixa, dentro da jaula (moderna), pede novamente que a libertem.
Não é fácil acompanhar o desenvolvimento emaranhado desta reflexão sobre a condição (ou os tormentos?) do feminino, na disposição algo confusa (ou propositadamente interrogativa?) que deram aos quadros da artista os organizadores do MARGS. Nem por isso a obra de Magliani perdeu seu impacto de conjunto, pois a tensa/densa atmosfera pictórica, orgânica ou carnal se podia dizer, quase que desvairia por si mesma em caos assustador. Nada de nebuloso, entretanto, e nem de impenetrável, pois o vento qua a sopra, procede de uma vontade de ordem que, embora irregular, reinstala artista e espectador, ainda que perplexos, num horizonte histórico: o da própria pintura.
Se, no início, o puro desejode encontro (dentro da noite) contrai tímido grito expressionista, logo uma linguagem próxima da metafísica de De Chirico com seus manequins inquietantes, põem em cena os emblemas ou instrumentos condicionadores do feminino. Eles parecem vir de fora, produzidos pela figura masculina que, ainda que rara, estica a brida, a corda mordaça que rasga a boca, paralisa a língua, interrompe a fala. Parece vir dele o capacete secador de cabelos (ou chupador de miolos), que definem a figura da mulher, que logo, mais sutil, vai empunhar os instrumentos da feminilidade mesma, sutiãs, calças ligas, que suportam o corpo que se marca em dobras, que já se desfaz em vincos, gorduras. Mas este corpo que se surrealiza, na medida em que manequim gordo, desglamourizado, é feito coisa de uso, “ela”, “brinquedos de armar”, “objetos em cena”, ao mesmo tempo se fragmenta, sofre distorções cubistas que permite a Magliani acrescentar-lhe as colagens de outros emblemas instrumentais.
Além das peças íntimas sempre negras, há o sapato (novo?), o colar, e também a panela no lugar do ventre (função ou uso?), ou cabide que torna o corpo em prêt-à-porté escamoteável em qualquer guarda roupas. Aparentemente mais realistas, isto é com maior domínio das convenções do desenho, as figuras de Magliani na sua evolução sucessiva, impôem-lhe, assim mesmo, uma lei que lhes é própria esparramando-se, ainda que fragmentadas, pela tela, tendendo a assumir um caráter puramente matérico (que me lembra muito de longe Dubuffet), e que se converteria em galáxia amorfa não impusesse a artista limites sociológicos à sua reflexão pictórica sobre a condição corporal da mulher. Esta condição que a vitima vai contudo, pouco a pouco, vir de dentro dela mesma. Com efeito, o caminho de Magliani parece proceder de uma reflexão social-surrealista, que pede (em que sentido?...sociais apenas?...psicológicas?) libertações da mulher, para aceitar, em seguida, uma condição existencial, originalmente constitutiva de um ser que, talvez não apenas feminino, venha a ser a humanidade toda.
Contudo, neste percurso ainda há referências a verificar. Há a dialética da cara e da máscara, tão saída do teatro em que a artista andou entretida, e talvez das gravuras de Goya cujos Los Caprichos refletem também a condição feminina, entre a sedução e a perfídia, e que destina os personagens mulheres dele a virarem bruxas, instrumentos da superstição e do obscurantismo religioso. Há aqui algo de Los desastres de la Guerra pois o corpo que Magliani insiste em apresentar-nos se mutila, no esforço de assumir-se, para se doar. Mas o que se enriquece neste percurso é, principalmente, o domínio do traço, da pincelada, da construção da figura, tudo mobilizado para expressar a grandeza e o drama do animal escondido debaixo da pele, cuja pulsão se faz cor, ataque impressionista-expressionista à tela, que torna as tonalidades fosforescentes noturnas, neon, e quase espirram ou transbordam sobre o espectador angustiado.
Magliani ainda fez experiências de figuras recortadas, entre o bi e o tridimensional, displays de propaganda virados os próprios personagens que anunciam, aproximando-se assim, da Pop Art, contudo, parece mais significativo, o encontro da pintura dela com a de Francis Bacon, esse dramaturgo da contingência carnal da criatura humana, e que tão bem soube expressar o caráter explosivo da existência, a qual se desfigura e sangra ao assumir o espaço jaula, a intransponível grade que a encarcera temporária, mas definitivamente, no seu grito solitário.
Dele, Magliani aprendeu a temporalidade que supera o símbolo, pondo em "câmara lenta" o corpo que explora, estático, tão repetidamente. Nos seus "relatos" de 1986, as figuras borram-se visualmente ao tentar acompanhar com brusquidão, nervosa, incontrolada, o movimento mais lento do tempo inexorável da existência. As figuras como que perdem os seus limites anatômicos ao se temporalizarem no gesto, ou melhor, na tentativa de fazer o animal contido na carne acompanhar o tempo de seu existir. Parece que Pandora se desmitifica, historizando os instrumentos da sedução para assumir, ainda que sozinha, por cima da eternidade, um tempo animal, felino e humano que talvez lhe permita aceitar parceria e prazer. Esta tentativa de leitura iconográfica da obra de Magliani para ser completa, precisaria ainda deter-se na sua produção gráfica, desenho puro ou de ilustração, que ocupa as outras duas salas do 1º andar do MARGS. Isso ultrapassa, entretanto, os limites de uma crítica de jornal. O leitor inteligente encontrará aqui elementos que o auxiliarão na visitação destas outras partes da exposição de uma artista que se envolve com a problemática do corpo...feminino.
Carlos Scarinci, 1987