Uma armadilha visual A interface escolhida por Marcio Zardo é absolutamente confessa: a alquimia textual-visual, ou melhor, as palavras-imagens e vice-versa, essa simbiose que produz semânticas próprias, independentemente de si se inscrevem no território mais abrangente das artes plásticas ou não. De fato, se a interação destes dois campos sempre produziu bons resultados na renovação da poesia visual que extrapolava suas margens, excetuando casos singulares conceituais (J. Kosuth, J. Baldessari, M. Broadthaers, B. Kruger, por exemplo), há só poucas décadas que o uso da palavra, o texto, e nem se fale das narrativas, tem horizontalizado as preferências artísticas, gerando um território de apreciação estética e consumo, uma vertente quase parte do mainstream... Contudo, sempre como outro foco de atenção imagética que se contamina com as experiências dos signos abrindo-se aos espaços. (A ressurreição e moda dos livros de artista é outro sintoma próximo desta oscilação do gosto). Neste contexto sempre lateral de ler-olhar, sempre à procura de outra leitura das coisas, Marcio Zardo cria seu próprio mapa de atuação fronteiriço, com várias operações planares e tridimensionais, com gestos e situações diversas. Como numa das vertentes enxutas que se expõe aqui, na qual o uso de carimbos, já no limite de sua função pública qual relíquia burocrática (ainda uma peça instrumental do discurso protocolar e de poder), converte-se em signo de identidade artístico vinculado sobretudo a experiências de anti-lírica, ou de poesia ampliada por novos enunciados (a lembrar o poema-processo, José Claudio, Paulo Bruscky, Waltércio Caldas...); em suma, como atividade dedicada à desconstrução semântica, dentro e fora da página, à construção de novas configurações, figuras. Esta austeridade visual deste suporte para documentos e trânsito burocrático e a característica móvel de seu selo-registro, converteram o carimbo num aliado objetual, um artefato de escritura portátil que privilegiava a síntese ou o alvo de um recado pluri-semântico, de desenho ou de uma direção insuspeitada na metamorfose pictórica (veja-se a presença de um cavalete numa obra rotulada de Paisagem transformar-se em instalação, numa inversão quase magrittiana, a natureza rebobinando-se à seu lugar de tela). Seja também na escolha de um léxico bem simples mas convocado para uma nova dicção verbo-visual, para virar do avesso seu sentido primeiro, direcional ou produzir outra alternância linguística. Assim, certo Urgente se emaranha como o pelo do púbis feminino (lembrando a famosa tela da origem de Courbet e outra analogia com outro púbis, poema de Julio Plaza, que foi anátema para certa idolatria esquerdista pela sua analogia com o cavanhaque de Lenin). E já longe do espírito cartorial, Confere e Sem efeito, duas marcas burocráticas, se veem profundamente alteradas para reconhecer outra coisa, um desvio cognitivo em toda regra. Como a dúvida Arte sim, arte não, que faz parte de nosso dilema pós-vanguardista, sobretudo após o febril século XX e seu inquietante depois, sendo uma interrogação meta-poética obrigatória. Ou então os dizeres Original e Cópia ou Branco e Preto alterando seus códigos formatados, pré-categorizados, ganhando entre eles um espelhamento especular. No fundo, tudo não deixa de ser uma estratégia de linguagem poética quando abraça a sua condição mais plástica, via uma bidimensionalidade acidentada, irônica, que subverte o imaginário reinante, “a opacidade de nossas noções e representações” (como diria Reynaldo Roels Jr. a próposito do artista). Doravante, dentro da atual cena da arte, a escolha de armadilha visual será quase inevitável, por razões linguísticas, sociais, políticas, de sentido. Trata-se sempre da captura de outro real. Como não fazer então poesia visual tridimensional, com signos, objetos, gestos, suportes, nestes tempos ruins para a lírica - como sempre, como diria eternamente Borges? Ou como não conspirar no meio dos paradigmas opressivos e recalcados da visualidade reinante, da estética instrumentalizada? Adolfo Montejo Navas [Foz, 10 maio de 2018] |