O que vejo em comum na atual produção de quatro artistas independentes é um processo de dissolução do eu. De uma geração ainda regida por crenças modernistas fundamentadas em bipolaridades e relações de causa e efeito, como as de artista/marchand, galeria de arte/crítica de arte, obra/público, sujeito/objeto, pouco a pouco passamos a atuar em sistemas que operam a semelhança de um rizoma[1], cujas funções de artista, crítica, produção e circulação de trabalhos são agenciadas em coletivos de artistas, que não ficam mais individualmente a espera de um reconhecimento institucional. Carlos Borges trabalha a partir de enunciados linguísticos. Uma bola oca, com a superfície constituída por múltiplos pares de meia enrolados, expressa poeticamente a ideia de que existem muitos chutes para que apenas um chegue ao gol. Múltiplos bilhetes de jogo do bicho fixados em redes de pesca formam imagens difusas, pixeladas, como as de uma multidão sem um rosto definido. Os que apostam na sorte imitam uns aos outros, no sentido que acreditam na possibilidade de se tornarem vencedores, mesmo que seja através da projeção no outro. Borges costuma tratar a subjetividade a partir de um significante genérico, assim ele convida diferentes mulheres a falarem a palavra “caralho” diante de uma câmera de vídeo, palavra que para além da conotação sexual é um jargão bastante popular, que pode significar tanto algo muito bom como algo terrível. Marcelo Brantes faz colagens compostas por fragmentos de caixas de fósforos, riscadores remontam o símbolo Pinheiro da marca Fiat Lux, segmentos lineares formam gráficos que marcam pulsões entre movimento e repouso. O tronco de uma árvore sobre uma maca de ferro, como um corpo de membros amputados, parece traduzir a falência da bipolaridade entre natureza e cultura. Espinhos em vidros e fixos a um quadro são como pinceladas de gestos incisivos. Num fragmento de vídeo, Brantes risca um fósforo no escuro, registra sua imagem sob luz instável, amarelada, que revela sua fisionomia num instante determinado pela duração da chama. Riscar fósforos são tentativas de acerto que comportam a possibilidade de erro, fósforos que acendem e apagam são estrelas de curtíssima duração, a vida é multiplicidade infinita de luzes oscilantes. Num canto da sala, Noémie Goldberg dispõe espelhos contrapostos nas paredes e no chão que disparam um jogo de reflexos de multiplicação infinita. Os pontos, linhas e formas que insere nesse espaço são fragmentos de símbolos que já não transmitem significados específicos, mas um sentido imanente a todas as coisas que circulam pelo mundo. Dentro de sua instalação, em ambiente exíguo, nos sentimos dentro de um mundo no qual as linhas não se fecham, geometria caótica que modifica o espaço onde se instaura envolvendo a imagem de nossos corpos em suas tramas. No meu trabalho com fotografia, objeto e vídeo combino imagens que desestabilizam a memória. Como nos sonhos: a cabeça que repousa sobre o travesseiro funde imagens através de teclas de computador; a mesa de superfície vazada apresenta imagens fotográficas superpostas, que cambiam seus planos sobre a luz do abajur que oscila entre matizes de cor. A mesma estratégia de superposição entre planos é utilizada numa videoinstalação, na qual um vídeo central é projetado à frente sobre uma tela branca, emoldurada por outro plano de vídeo que se projeta sobre móveis, ferramentas, paredes e trabalhos de outros artistas do Estudio Dezenove. Em Só a arte nos une o almoço na relva de Manet é encenado com animação pelos amigos artistas, em O dia começa e acaba em Santa Teresa, diferentes locais da cidade são vistos através de antigas fachadas do bairro. Produto de parcerias das mais diversas naturezas, os trabalhos dessa exposição parecem livres para prosseguir em qualquer direção. Como corpos sem ossos de suportes maleáveis ou modulares, tendem a incorporar a forma dos espaços onde temporariamente se encontram. Beatriz Pimenta Velloso [1] Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Mil Platôs, São Paulo: 34, 2011. Rizoma, segundo os autores é um sistema de reprodução que opera por contagio em ambientes que podem ser temporariamente compartilhados por diferentes espécies, classes sociais, grupos étnicos ou de gênero, permitindo formas de hibridismo que vão da genética à doença, da natureza à cultura. |