MARIA LIDIA MAGLIANI - DESESPERADA MENTE
Introdução
Em 1993, Iberê Camargo afirmava em entrevista para a revista Veja: “Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói.”[1] A frase poderia ter sido escrita por Maria Lídia Magliani, cuja obra conflui em muitos aspectos com a de Iberê. Os dois artistas optaram pela matriz expressionista, sem se importar com o fato de o movimento estar, ou não, em voga; sempre defenderam, com veemência, a pintura como forma de expressão, mesmo quando pressionados a buscar uma arte mais experimental, e seus trabalhos são contundentes, urgentes e ríspidos – como os ventos do Sul. Também gaúcha, 32 anos mais jovem, Magliani era mulher, negra e pobre, e, embora essa conjunção tenha freado muitas vezes sua produção, foi também o cadinho de sua obra, que é visceral, dolorida e pungente – “uma arte para incomodar”.[2]
Na carta de Iberê Camargo para Magliani[3], localizada no material documental da Fundação Iberê, durante a pesquisa para a exposição que agora apresentamos, e reproduzida na abertura dessa publicação, o artista, que não era pródigo em elogios, reconhece a afinidade entre a obra de ambos com as palavras: “Nós dois temos a mesma meta, o mesmo ideal, a mesma devoção.” Um eloquente endosso do mestre gaúcho para Maria Lídia Magliani e uma confirmação do acerto da Fundação Iberê em trazer para o público uma grande retrospectiva da artista.
Conheci Magliani em 1987, quando eu era diretora técnica do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e ela uma das artistas do “Panorama”, naquele ano dedicado à arte sobre papel. Na época, a exposição era um referencial das artes plásticas e a obra de Maria Lídia tinha total reconhecimento da crítica. Desde a chegada dos trabalhos fiquei impressionada com a qualidade dos desenhos e cativada pela singularidade da pessoa da artista. Em 1989, defendi junto à comissão de arte da instituição o nome de Magliani para aquisição de algumas de suas obras para o acervo, indicação que felizmente se efetivou. Muitos anos depois, em 2004, quando ambas estávamos residindo no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de fazer a apresentação de sua exposição Trabalho Manual. Naquele momento já preponderava na crítica de arte brasileira uma rejeição a obras figurativas e expressionistas, postura que perdurou por anos, e que só agora parece dar mostras de exaustão. Foi, portanto, um alento ver a receptividade com que o projeto dessa retrospectiva foi recebido por colecionadores, curadores e comissões de arte de instituições, que emprestaram as 202 obras que compõem a mostra.
A curadoria foi realizada em parceria com Gustavo Possamai, responsável pelo Acervo da Fundação Iberê, e, durante todo o processo de pesquisa e produção, tivemos em mente a seriedade de fazer esse resgate da artista. Uma responsabilidade que nos assustou no decorrer do trabalho, pela quantidade de material localizado: pinturas, desenhos, ilustrações, atuação em teatro, figurinos, cenários, textos, entrevistas, cartas, tudo de alta qualidade e em grande quantidade. Um desafio! Cientes da impossibilidade de processar todo esse material a tempo de conceber uma leitura inovadora, optamos por realizar uma mostra claramente retrospectiva apresentando, em ordem cronológica, de 1964 a 2012, as diversas fases do trabalho de Magliani, e também uma cronologia ilustrada que conta a história de sua vida e inserção no circuito de arte. Para compartilhar com o público a instigante personalidade da artista e sua multiplicidade, que tanto nos impressionou, permeamos o percurso da mostra com algumas de suas frases e fotos. A publicação que acompanha a exposição é composta por dois volumes, o primeiro deles concebido como um catálogo de obras, e o segundo reunindo entrevistas e textos de Magliani, algumas de suas cartas, textos sobre ela e sua cronologia. Como opção curatorial, todos os textos são apresentados na íntegra, sem edições. Certos de que a exposição surpreenderá o público e a crítica, Gustavo e eu temos, entretanto, a consciência de que essa mostra é apenas o princípio – a ponta de um longo fio que merece ser puxado.
Não posso deixar de agradecer a Emilio Kalil, diretor-superintendente da Fundação Iberê, o convite para essa curadoria, a todos os colecionadores e instituições que cederam suas obras, a Julio Castro, que colocou à disposição o material reunido ao longo de anos para o Núcleo Magliani, do seu Estudio Dezenove, à família da artista pela autorização para a realização da mostra, aos amigos que liberaram suas cartas, a todos os autores que cederam seus textos, especialmente Angélica de Moraes, e à Tina Zappoli, uma importante artífice desse resgate, que teve início ainda em 2019, com uma conversa nossa sobre a oportunidade dessa exposição. A Gustavo Possamai agradeço a total dedicação e o desempenho de excepcional qualidade, gratidão que estendo a toda a equipe da Fundação Iberê. Sem o apoio de todos, essa mostra não estaria acontecendo.
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Não quero ser fatiada, dividida em porções, me aceito como soma.[4]
Maria Lídia Magliani nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, e, embora sua família tenha se mudado para Porto Alegre, em 1950, a artista trazia dessa vivência infantil uma percepção muito marcante: “Para minha escolha contribuiu muito o fato de ter nascido em 1946, em Pelotas. Lá fui tratada como filha numa casa da tradicional família pelotense, cheia de pinturas e objetos de arte. Um clima assim de nobreza rural e tapetes fofos. Depois, aos quatro anos, meus pais se mudaram para Porto Alegre e fui morar em um barraco de zinco no morro. Saí do contato com a aristocracia para a classe C, numa mudança violenta. Depois, aos poucos, passei para a classe média.”[5]
As informações sobre a família de Magliani são esparsas. Em algumas de suas entrevistas a artista conta que seu avô era italiano e pintor-decorador, fala com carinho do pai, que teria lhe dado, aos 9 anos, uma revista com reproduções de Van Gogh e uma caixa de tintas, e que também a ajudou a montar suas primeiras telas. Pouco fala sobre a mãe, o irmão, e a irmã Maria da Graça, que, entretanto, segundo vários depoimentos, chegou a ser uma cantora bastante conhecida. Mas, nas suas muitas cartas a amigos, como Caio Fernando Abreu, Glaé Macalós, Renato Rosa, Tina Zappoli e Maria José Boaventura, ela queixa-se da falta de estrutura da família, o que parece tê-la sobrecarregado de responsabilidades.
Desde criança Magliani gostava de desenhar, e o fazia bem. Em Porto Alegre, sua mãe lavava roupas para complementar o orçamento da casa, e uma das famílias que ela atendia reconheceu o talento da menina e se dispôs a ajudar. Assim, com o apoio da família Giugliani, Maria Lídia ingressou, em 1963, na Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Magliani foi a segunda mulher negra a receber o diploma do Curso de Pintura da instituição[6], mas foi a única naquela época a seguir carreira, que teve início já em 1966, ano de sua formatura. A jovem artista recebeu grande apoio de Ado Malagoli, seu professor, que a incentivou a realizar uma exposição individual. Foi grande a influência de Malagoli sobre Magliani, e, se essa importância, ao que se saiba, nunca foi proclamada pela artista, ela está presente tanto na produção da década de 1960 quanto em posturas que Magliani assumiria em toda a sua carreira.
Ado Malagoli mudou-se para Porto Alegre em 1952 e participou da reestruturação do ensino de pintura na Escola de Belas Artes no Rio Grande do Sul e da criação do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, que, desde 1977, leva o seu nome. Formou toda uma geração de pintores que estão hoje entre os principais artistas gaúchos.
Nascido em 1906, ele estudou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Nos anos 1920, conviveu com Volpi e Mario Zanini e Rebolo, e, em 1931, participou da criação do Núcleo Bernardelli no Rio de Janeiro. Com o prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional, viajou, em 1942, para os Estados Unidos, onde estudou no Fine Arts Institute, da Universidade de Colúmbia e no Brooklin Museum. Malagoli era, portanto, um representante da segunda fase do modernismo, caracterizada pela retomada de alguns dos valores clássicos, mas sem a rigidez acadêmica; o chamado Retorno à Ordem. Segundo o Prof. Círio Simon: “Dedicado, até as raias da ascese, à Pintura a óleo, [Malagoli] não admitia que nenhuma outra técnica concorresse com este meio, até que esta outra técnica provasse a sua capacidade de manter o ato criativo do artista intacto ao longo do maior tempo possível.” E, embora muito conhecido por suas paisagens, ele preferia a figura humana: “A paisagem é bela. Mas a figura humana é tudo. Seus contornos, permitindo uma interpretação humana daquilo que se pinta, os traços psicológicos, característicos de cada um, nada é mais sublime.”[7]
São atitudes frente ao trabalho que se perpetuarão na produção de Magliani, que preferia o óleo à tinta acrílica, e que sempre proclamou a primazia da figura humana como tema. Nas obras da artista, da década de 1960, ela herda de seu professor o uso de tons escuros aplicados em grandes massas e a materialidade da tinta, aplicada com texturas. Entusiasmado com seu trabalho, Malagoli assina o texto de apresentação da exposição individual que ela faz em 1966 na Galeria Espaço: “Suas composições, com luas mórbidas a se destacarem sobre fundos e riscados de frases poéticas, apresentam estranhas e esguias figuras humanas reduzidas a pura expressão formal. Possuindo uma visão própria da realidade sensível, renuncia aos efeitos superficiais, à atração fácil do colorido pujante e decorativo e difunde em suas obras certo encanto espiritual de transcendente simplicidade.”[8]
Um clima melancólico e lírico caracteriza essa primeira produção de Magliani. Suas figuras estáticas e pálidas surgem como espectros sobre o fundo negro. Elas têm um ar perdido, e, mais do que portar as flores em suas mãos, parecem se segurar nelas, como âncoras para seu desamparo. A partir de 1967, corpos e cores vão se insinuando no trabalho, ainda denso e escuro, e a inserção das frases poéticas é riscada sobre a tinta, de forma quase tosca, criando uma escrita vaga e misteriosa. Na exposição estão reunidas 11 obras desse período, com frases enigmáticas como: A espera do canto (c.1965/1966), O mesmo corpo com som de primavera (1966), Autorretrato na nuvem (1966), Eu tenho a flor (1967), Eu sou a inútil pureza nascida de dois silêncios (1967).
Em 1967, Magliani fez pós-graduação com Ado Malagoli e formação pedagógica pela Faculdade de Filosofia, e nesse ano conheceu Caio Fernando Abreu. Tornaram-se inseparáveis e estabeleceram uma sólida amizade que continuou até o falecimento do escritor – apesar das constantes mudanças de ambos. A relação entre eles, tão frutífera intelectualmente, foi, entretanto, um permanente motivo de angústia para a artista. Encantada pela afinidade de ideias e sentimentos que compartilhava com Caio, Magliani sempre teve a consciência que ele a via apenas como uma querida amiga – mas isso doía. “Não tenho canto nem palavra/ Que cobrir este vazio/ Não te encontro, não me vês/ E evitando e esperando/ De medo e espera fumamos”, escreve ela para Caio, numa poesia dedicada a ele, em carta desse mesmo ano.[9]
Magliani era uma missivista contumaz, escrevia cartas constantemente para os amigos próximos, e, parafraseando Mário de Andrade, sofria de “gigantismo epistolar”. Um incêndio destruiu as cartas recebidas por ela[10], restando apenas a sua palavra nos arquivos dos amigos. A leitura de sua correspondência revela uma personalidade complexa, rascante e agressiva, mas também divertida e amorosa. Muito pessoais, suas cartas evidenciam a instabilidade financeira que sempre a acompanhou, a carência afetiva da qual se ressentia e uma inquietude profunda que a levava constantemente a mudar de cidade e de endereços, em busca de algo que jamais encontrou.
Em 1968 há uma mudança significativa na obra da artista. Diz ela em entrevista da época: "Mudou muito, em um ano, o caráter da minha pintura. Já não vejo o lirismo que me atingiu em outro tempo. Agora sou uma delatora do desencontro. Desencontro sob todas as formas, do homem com o homem, do homem com seu mundo, dominado pela máquina. A denúncia da ausência de comunicação é o meu tema atual."[11] É uma fase de passagem, um momento que se estende até 1970. Alguns fatores externos parecem ter contribuído para essa mudança: a visita à IX Bienal que a apresentou à Pop Art, e o período de quatro meses que residiu em São Paulo. Diz ela: “Eu precisava conciliar minha fase lírica com a desumanização que tinha visto. Foi então que surgiu minha série Nesta Cidade Cinzenta, onde elaborava, em dois planos, elementos como faixas de segurança, relógios e chaves”.[12]
Entre as obras desse período, apresentadas na exposição, há trabalhos como Segundo canto para o amigo triste, ainda próximos de sua fase lírica, mas já incorporando características da Pop-Art, que se tornam mais evidentes em As portas fechadas da cidade, certamente um trabalho da série Nesta Cidade Cinzenta, que mescla madeira e pintura criando relevos, e que Magliani chama de esculpintura. Ainda nessa vertente, há telas como Sem título (1969) e Sem título (1970), nas quais a artista utiliza cores chapadas e puras, como branco, vermelho e azul, repetindo nas telas, em dois planos, os elementos de suas pinturas-objetos.
Embora jamais tenha deixado de desenhar e pintar, há uma sensível diminuição da produção plástica de Magliani entre 1970 e 1974, devido às atividades que ela desenvolve em teatro. Foi um momento importante da atividade cultural na cidade de Porto Alegre, que fervilhava, apesar da repressão e da censura. A artista atuou como protagonista e atriz coadjuvante em diversos espetáculos, criou cenários e figurinos, e, ao lado do ator Francisco Aron, com quem manteve longa, mas descontínua relação afetiva, criou um espaço expositivo no alternativo Teatro Aldeia 2, no mítico bairro Bom Fim.[13] Não faz parte do escopo deste texto analisar a atividade teatral de Magliani, mas podemos dizer que ela trabalhou ao lado dos mais importantes diretores, autores e atores desse período, tais como Delmar Mancuso, Fernando de Rojas, Luís Artur Nunes, Renato Rosa, Ivo Bender, Paulo Albuquerque, Romanita Disconzi, Irene Brietzke, Sandra Dani, Suzana Saldanha, entre muitos outros. Apesar do sucesso, Magliani sempre declarou que sua experiência teatral era apenas “um pincel a mais”, e uma forma de compreender melhor o espaço pictórico.
Em 1972, sem abandonar o teatro, Magliani passou a trabalhar como ilustradora e diagramadora da Revista ZH do jornal Zero Hora. Nesse ano, realiza a série Andando, que apresenta na Mostra a dois, exposição conjunta com Rosane Silva, na Galeria Gerdau. A mudança no trabalho da artista chama a atenção de Teniza Spinelli, que escreve, no Correio do Povo: “Seu trabalho anterior, tantas vezes lírico, complementado por frases poéticas, dá lugar agora, em sua maturidade, a uma intensa crítica social, focalizando uma das situações mais angustiantes da vida do homem contemporâneo – a falta de tempo, a pressa, a correria sem sentido que traz consigo a alienação das coisas essenciais da vida.”[14] Andando é uma série
que imaginamos ter sido pequena, pois poucos trabalhos dela restaram, como Sem título (1973).
A criação de séries é um procedimento que a artista usa desde o início de seu trabalho, e que manterá até o final da carreira. Nesse primeiro momento, os títulos parecem substituir as frases poéticas, tornando-se um elemento importante, que evidencia a vinculação com a palavra subjacente à produção pictórica da artista. Vale observar que as séries saem umas das outras, se sucedendo, se sobrepondo, se encerrando e retornando, num produtivo (mas impreciso) processo de criação, devoração, entrelaçamento e sequência. Em 1975, apesar de estar mais voltada para a ilustração e para a criação de cenários, Magliani inicia a série Objetos de cena, que será recorrente em sua produção.
O ano de 1976 marca uma virada fundamental no trabalho de Maria Lídia Magliani. É o momento no qual ela dá um passo significativo na definição de seu repertório, ao qual será fiel apesar das consequências. Convidada pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul a realizar uma exposição comemorativa dos seus dez anos de atividade artística, Magliani apresenta Anotações para uma história, um conjunto de figuras de olhos vazados e expressão perdida, cérebros comandados por fios e movimentos decididos por cordas. Um rascante retrato da dependência do homem às conjunções de poder e ao controle da mídia. Foi um choque! A sociedade gaúcha não estava preparada para o que viu, e rejeitou com veemência o trabalho.
A imprensa prontamente colocou-se ao lado de Magliani. No dia 20 de maio de 1976, Angélica de Moraes abria a sua matéria para a Folha da Manhã com uma frase da artista: “Não sei por que as pessoas se assustam tanto com a ficção. A realidade é muito pior”, seguida de uma incisiva análise da mostra: “Sua exposição no Museu de Arte do Rio Grande do Sul é um corte irônico e cruel de uma sociedade onde o mecanismo do poder esmaga o cotidiano e o individual. É a representação plástica de todo um contexto repressivo que as pessoas sofrem, mas não querem admitir conscientemente que sofrem”. Complementando a matéria, Angélica comentava: “O choque causado no público chocou também a artista. Ela esperava um maior nível de consciência das pessoas”, e finaliza entrevistando os artistas Danúbio Gonçalves, Wilson Alves, Carlos Carrion de Brito Velho e Paulo Porcella, todos solidários ao teor crítico da obra de Magliani e impressionados com a rejeição do público.[15]
No Correio do Povo, de 22 de maio, o crítico Celso Marques publicava uma longa matéria intitulada: “Para desafinar o coro dos contentes”, na qual escreveu: “Cada uma de suas telas é um soco na cara do marchand e do comprador de quadros, é uma cuspida mal comportada no tapete da sala de visitas, uma intrusão incômoda da violência e da brutalidade no ‘recesso do lar’, um dedo na consciência cotidiana adormecida e alienada que diariamente lava as feridas e convive com a injustiça, a estupidez, o absurdo, a solidão e o desamor, resignadamente. Mais do que um protesto inútil e desesperado, a pintura de Magliani expressa o trágico da condição humana e revela os subterfúgios utilizados pelo senso comum e o bom senso na tentativa de negar essa condição.” Marques observava ainda o preço pago por Magliani por sua audácia: um total fracasso de vendas.[16]
O revés financeiro não demoveu Magliani, que, no ano seguinte, levou ainda mais longe sua proposta realizando a série Elas, com grotescas mulheres seminuas, imensamente gordas, que ela considerava uma espécie de “retrato interior da humanidade”. Um desenho dessa série valeu à artista o primeiro prêmio do I Salão de Desenho do Rio Grande do Sul em 1977. Participaram do júri o crítico paulista Jacob Klintowitz e o crítico carioca Marc Berkowitz, que, surpreendidos pela força do trabalho da artista, abriram para Magliani as portas de salões e exposições fora do Rio Grande do Sul.
Em setembro desse ano a artista apresentou um conjunto desses trabalhos numa mostra individual na galeria do Instituto dos Arquitetos do Brasil, em Porto Alegre. Em entrevista da época, dizia ela: “Quando eu pinto as minhas gordas, quero que elas saiam da tela e sufoquem o espectador. É um clima como daquela música do Belchior (A Palo Seco): ‘Quero que esse canto torto/caia feito faca/em cima de você’. [...] “Eu gostaria de dizer às pessoas que veem meus quadros: ‘Sinto muito, senhores, não é agradável’”[17]. Apesar da contundência de sua obra ser maior do que o fora no ano anterior, o aval de críticos do eixo Rio-São Paulo cumpriu importante papel e Magliani viu seu trabalho começar a ser reconhecido em casa.
Podemos dizer que nesse momento Magliani estabelece definitivamente seu repertório, tanto imagético quanto construtivo. Seus trabalhos expressam as ansiedades e medos que permeiam os anos 1970, aliados aos fantasmas pessoais da artista. Seus retratos, viscerais, macabros e inquietantes, emitem gritos, que soam abafados atrás de máscaras, e os rostos obesos parecem sempre prestes a explodir num mar de gordura. Os corpos calipígios são representados aos pedaços, torturados por calcinhas, meias, sutiãs e cintas-ligas, e apertados em espaços claustrofóbicos. A paleta da artista é desconcertante, pois é paradoxalmente sombria e candente, as imagens são voluptuosas, mas não eróticas, e os corpos amputados parecem constituídos de diferentes pedaços, como colagens.
A adoção de uma temática tão radical parece render tributo à Magliani ilustradora. Trabalhando em redações, amiga de jornalistas e intelectuais, ela participou do dia a dia da imprensa, e também de publicações alternativas, como o jornal Versus, de cunho político, revista Tição, veículo de combate ao racismo, e Lampião da Esquina[18], que abordava os preconceitos contra as comunidades hoje chamadas de LGBTQI+. Essa vivência foi, sem dúvida, fundamental para a abordagem contundente que ela adotou na sua pintura, mas, apesar de pessoalmente engajada na luta pelos direitos humanos, Magliani não admitia que sua obra fosse interpretada como política ou identitária. Era intransigente nessa questão. São muitas as declarações dela a esse respeito.[19] “Meu interesse é pelo que as pessoas sentem, não pelo que elas pensam”[20] [...] “Tenho preocupação com a vida, com a humanidade em geral. Nada a ver com raça específica, religião, nada. Uma coisa que é comum a todo mundo. A essência humana é igual para todos. O que interessa é isso. Todos os outros acréscimos: nacionalidade, cor, ideologia, credo, preferência sexual, time de futebol, tudo isso é acessório.”[21]
Dentro dessa atitude de defesa da autonomia da sua obra, acima de qualquer circunstância, está também a rejeição a todo tipo de abordagem referenciando seu trabalho à negritude. “Ser uma pessoa de cor negra não interfere em nada na minha pintura e não entendo a sempre presente preocupação das pessoas com este aspecto. [...] Por que sempre me perguntam como é ser negra e ser artista? Ora, é igual ao ser de qualquer outra cor. As tintas custam o mesmo preço, os moldureiros fazem os mesmos descontos e os pincéis acabam rápido do mesmo jeito para todo mundo.”[22] A posição de Magliani sempre foi candente nessa questão, afirmava, desassombradamente, que era contrária a guetos, e também pagou o preço por essa atitude. Na importante publicação da UFRGS, Nós, os afro-gaúchos, de 1997, fez a seguinte declaração; quase um manifesto: “Sou brasileira, nascida no Rio Grande do Sul. Isto é o bastante. Não quero escolher uma raça em função da cor da minha pele. Não quero ser fatiada, dividida em porções, me aceito como soma."[23] O artigo está reproduzido na íntegra no volume de textos, e merece uma leitura atenta.
Em 1979, Magliani apresenta, na Galeria Independência, em Porto Alegre, a exposição Brinquedo de armar, reunindo desenhos e pinturas da série, que desenvolverá por um bom tempo. Declarava a artista: "Acho que a mulher é o brinquedo mais armado e desarmado constantemente. Mas considero que todo mundo é, ou pode ser, um brinquedo de armar. A forma da mulher se presta mais à luz e ao volume. Mas o homem também é um brinquedo de armar."[24] Nesses trabalhos, que derivam diretamente da série Elas, os corpos decepados tornam-se ainda mais assustadores. Suas formas aludem à impotência do ser humano, que aceita ser usado, sem opor resistência, seu corpo transformado em tripas expostas que se retorcem, enrolam e emaranham, até formar nós. Nas palavras de Ivette Brandalise: "Mas já não há mais nada. Nenhuma resistência, nenhum sofrimento, nenhuma expectativa, nenhum sinal de luta. Não houve luta. Houve uma concordância passiva, um deixar acontecer, uma morte interior que não permite sequer o recurso da própria morte.”[25] Ainda nesse ano a obra de Magliani participa de exposições em Belo Horizonte, São Paulo, Estados Unidos, com destaque para o tríptico que apresenta no Panorama da Arte Atual Brasileira – Pintura, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A mostra da Fundação Iberê reúne um significativo conjunto de 19 obras, de 1977 a 1979, que evidencia a potência da produção da artista nesse período.
Em fevereiro de 1980, estimulada pela recepção positiva de sua obra, Magliani muda-se para São Paulo. Logo produz as séries Pin-Up e Encontros numa esquina, mas é em Retratos falados que seu trabalho se reveste de novas e significativas características. A mudança veio a partir de uma série de desenhos realizados com lápis de cera nos quais a artista começou a usar a cor, que foi adquirindo força e se tornou imperiosa. Magliani abandona então os tons sépia, passando a usar cores vibrantes e ácidas, mescla lápis de cor, de cera, pastel, grafite, e até materiais de maquiagem, como corretivo e delineador, e muda também o tratamento da pintura, usando a tinta acrílica e adotando pinceladas ágeis e gestuais, como traços de desenho, num processo que imprime movimento ao trabalho. As obras retratam figuras em close-up, que invadem a tela inteira, nas quais rostos e detalhes são vistos de uma distância em que nada escapa ao olhar. Uma proximidade reveladora que confirma a visão do poeta de que “De perto, ninguém é normal”.
Suas obras participam de exposições por todo o Brasil, mas Magliani não perde contato com Porto Alegre, realizando, em 1984, uma exposição individual na Galeria Tina Presser, na qual, além dos Retratos falados, apresenta pela primeira vez algumas de suas figuras recortadas, trabalho que será desenvolvido com mais continuidade em outro período, e a inquietante série Crônica do amanhecer. São trabalhos quase sempre em pequenos formatos que mostram casais na cama, retratados sem o menor erotismo, perpassados por profundo constrangimento e assombro. Um desconforto agudo emana dessas obras, com mulheres de olhos arregalados de espanto, e nas quais os homens aparecem sempre vestidos, pois segundo Magliani: “Os homens nunca se despem, nunca se entregam”.[26]
Em 1985, a artista participa da exposição coletiva Grupo Gaúcho: pintura, realizada na Galeria Alberto Bonfiglioli, em São Paulo. No texto de apresentação diz Angélica de Moraes: “Dilacerada e trágica, a arte de Magliani discute as relações humanas e suas dificuldades. O universo de sua pintura é a multidão anônima das ruas, onde flagra as expressões e decepções das pessoas que trafegam no limite entre a submissão e a resistência. [...] Fiel ao expressionismo durante toda a carreira, mesmo quando os modismos apontavam em outra direção, ela não fez dessa opção uma fórmula."[27] No mesmo ano Magliani integra o núcleo Expressionismo no Brasil: Heranças e Afinidades, sala especial da XVIII Bienal Internacional de São Paulo. Fazem parte da exposição da Fundação Iberê duas das três obras apresentadas pela artista na emblemática mostra.
Em 1987, Magliani realiza, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, a retrospectiva Auto-retrato dentro da jaula, que marca os 20 anos de sua carreira. Podemos dizer que é um momento de desagravo. Dez anos depois da rejeição que sofrera, Magliani é acolhida pelo público de sua cidade como uma estrela, a mais importante artista gaúcha de sua geração.
A curadoria foi realizada por Chô Dornelles, que já vinha fazendo um trabalho de catalogação da obra da artista, e causou impressão à própria Magliani, que, em seu depoimento para o catálogo da mostra, disse: “Gosto de ver este resumo do pequeno caminho percorrido, um período nascendo dentro do outro, gosto da direção para onde aponta. E olho este começo como etapas do sempre retomar, reinventar, recomeçar. Um quadro de cada cor, um quadro com todas as cores. Ou preto e branco”. Na mesma publicação, Evelyn Ioschpe, então diretora do MARGS, observava: “O olho da pintora é nervoso, a obra fricciona a emoção, os medos, os pudores. É, sim, uma obra despudorada e destemida. Não teme, ao menos que lhe digam: não gosto. Não precisa que gostem. Precisa que a fatura da tela solape a máscara e que o espectador – ele também – deixe cair a sua e se veja vendo a tela, isto é, aprecie o espetáculo de si mesmo sem máscara."
A repercussão junto à crítica foi grande, com matérias de Angélica de Moraes, Maria Amélia Bulhões e Carlos Scarinci, que escreveu um longo texto, com o expressivo título: Um animal debaixo da pele, fora da jaula, analisando os vários momentos da obra da artista. João Carlos Tiburski fez uma entrevista para o Boletim do MARGS, incluindo perguntas do público, de Milton Kurtz e de Armando Almeida, um documento muito importante sobre o pensamento de Magliani.
No mesmo período, Tina Presser apresenta uma exposição individual da artista em sua galeria e, adotando uma prática pioneira no circuito de arte, coordena a continuidade da mostra para a galeria Espaço Capital, em Brasília, e para a Paulo Figueiredo, em São Paulo, na época, a mais importante galeria paulista para a arte contemporânea. No texto do catálogo do MARGS, Magliani já falava sobre sua produção mais recente: Discussões com Deus, e, ainda em 1987, apresentou em Pelotas, sua cidade natal, um conjunto de obras dessa série. Segundo a artista: “Discussões com Deus é o resultado do trabalho desenvolvido nos últimos dois anos, baseado numa série de estudos de observação da figura sentada. A partir destas anotações procurei desdobrar a imagem em diversos estados, num procedimento incorporado da gravura. Trabalhando com vários materiais, exagerando a cor ou prescindindo dela, procuro climas diferentes agindo sobre o mesmo tema – modos desiguais de ver de um mesmo ângulo – como múltiplas opiniões a respeito do mesmo assunto.”[28]
É um momento no qual a obra de Magliani conversa de perto com a de Francis Bacon, atingindo o ápice de contundência e visceralidade da pintora. Retorcidos e distorcidos, corpos e rostos se desfazem e refazem, em movimentos bruscos. Obras como Retrato de Davi, A namorada vai chorar, Figura sorridente, integram na exposição um conjunto de 20 obras, das quais é impossível escapar ileso! A artista leva a tensão ao extremo e esgarça suas forças – desesperada_mente.[29]
Esse período, de 1980 a 1988, o mais marcante da carreira da artista, coincide com o tempo em que ela residiu em São Paulo. Entretanto, Magliani nunca se adaptou inteiramente, sentindo-se sempre oprimida pela cidade, e, apesar de festejada pela crítica, não obteve um retorno financeiro que assegurasse sua tranquilidade. Em parte porque sempre destinou fatia significativa de seus ganhos para ajudar a família, mas, principalmente, porque seu trabalho desafiante e incômodo, nunca se prestou a decorar ambientes. Magliani também não tinha a mínima paciência para jogos sociais e, em suas cartas, descreve com acidez o circuito de arte. Impossível não acrescentar que ela era mulher, negra e pobre, e que isso, certamente, pesou na monetização de seu trabalho.
Assim, em 1989, Magliani decide sair de São Paulo e vai residir em Tiradentes, Minas Gerais, buscando uma vida mais tranquila e confortável. Em agosto de 1990, em carta para Angélica de Moraes, anuncia a realização de uma nova série: “Já é uma loucura ver a montanha com todas aquelas cores, quando se as vê separadas é difícil de acreditar que seja real. Lilás / grafite / marrom café, ocre amarelo claro / terras avermelhadas, laranja, rosa escuro, vinho. Estou acrescentando à massa de papel e serragem para as cabeças. Elas estão maiores e são feitas em torno de umas madeiras antigas que encontrei debaixo de umas garrafas não tão antigas (e vazias). E estou fazendo esboços para as telas onde vou usar apenas estes tons. [...] O nome da pintura série (desenhos / objetos e pinturas) é ‘em Gerais’. És a primeira a saber.”[30]
De fato, em novembro desse ano, Magliani apresenta na Galeria Tina Zappoli, a sua nova série em Gerais. Deixando de lado os traços nervosamente coloridos da acrílica, Magliani volta ao óleo, para usar os pigmentos terrosos de Minas. É uma fase um tanto indefinida, na qual os desdobramentos de imagem parecem perder rapidez, tornando-se mais densos e estáticos. A artista também envereda por novas propostas, como Retrato com pesadelo, um trabalho sem a composição sobrecarregada característica de sua produção, e que evoca a emblemática imagem da menina Kim Phuc e o horror do Vietnã. Mas, as cabeças em madeira e em papel machê, são, sem dúvida, a mais marcante produção desse momento. A artista já havia anteriormente realizado objetos, mas agora alcança excelência. Saindo das telas e adquirindo corporeidade as cabeças tornam-se ainda mais insólitas e assustadoras. O conjunto desses trabalhos apresentados na exposição evidencia como Magliani contrapõe diferentes texturas: ela usa parcimoniosamente a pintura apropriando-se das imperfeições das madeiras antigas; modela com perfeição o papel machê, mas retém as marcas que lhe interessam, e usa o verso dos trabalhos para desvendar segredos, revelando o que está escondido.
No período em que vive em Tiradentes, Magliani integra-se aos artistas da cidade, ajudando a fundar o Grupo LOA – Largo do Ó Arte, do qual participa ativamente. É uma fase na qual escreve muito aos amigos e nessa correspondência fala de sua vontade de dedicar-se à pintura, plantar e cuidar de sua “casa de bonecas”. Nos primeiros tempos encanta-se com tudo, mas, sua inquietude logo se manifesta. Aos poucos passa a detestar tudo o que a atraíra, o pequeno tamanho da cidade, o fato de encontrar sempre as mesmas pessoas e a vocação turística de Tiradentes. Em 1996 ela decide voltar a morar em São Paulo.
O período de Tiradentes não deu bons resultados para Magliani, o afastamento das grandes cidades não trouxe a tranquilidade que ela esperava, pois se viu rodeada de demandas domésticas que a atrapalhavam; ao mesmo tempo, por não estar em São Paulo, deixa de ser chamada a participar de exposições, diminuindo sua visibilidade, o que formou um círculo vicioso de apagamento. Outro fator a considerar é que nos anos 1990, a pintura perde consideravelmente seu lugar para a arte conceitual, para experimentos e instalações, aos quais Magliani nunca aderiu.
Na segunda fase de sua produção em Minas, a artista realiza a série Madrugada insone, que apresenta, em 1992, na Galeria Tina Zappoli[31], em mostra conjunta com Maria Tomaselli. Segundo a artista, o trabalho surgiu de suas noites de insônia, quando desistiu de procurar o sono e começou a pesquisar o efeito da luz noturna sobre os objetos do quarto. Essa pesquisa se estende por algum tempo e pode ser vista nas obras Salomé sorri (1993) e Personagens da Insônia II (1993). É também o momento no qual a artista inicia a série Acumulações, na qual reúne elementos do cotidiano explorando suas múltiplas possibilidades de forma. Nela Magliani cria pilhas de objetos, repetidos com pequenas variações, como bules, xícaras ou bolsas, acentuando o excesso que caracteriza nossa sociedade consumista. Para isso usa uma estética também excessiva, com pinceladas ultra coloridas e flamejantes. Todos os elementos parecem dançar.
Entre 1996 e 1999 Magliani reside sucessivamente em São Paulo, no Rio e em Porto Alegre, e, embora não pare de pintar e faça algumas exposições individuais, todos esses deslocamentos diminuem sua produção. Finalmente, em 2000, fixa-se no Rio de Janeiro, em Santa Teresa, e passa a produzir seu trabalho no Estudio Dezenove, ao lado de Julio Castro e outros artistas. Já no ano seguinte, apresenta a exposição Auto-Retrato, na Galeria Tina Zappoli, reunindo 12 obras de sua produção recente. Na ocasião, dá uma entrevista para Eduardo Veras, na qual expressa seu desencanto com os rumos do circuito de artes plásticas: “Conheci muitos pintores nos últimos 20 anos e, embora eu saiba que eles continuam trabalhando, não ouço mais falar neles. [...] São lembrados apenas em retrospectivas do tipo Artistas da Década de 70. [...] Estamos condenados ao ‘núcleo histórico’, uma espécie de aposentadoria compulsória”.[32]
O trabalho integrado ao Estudio Dezenove leva Magliani, em 2002, a fazer sua primeira viagem à Europa. Nesse período Magliani retoma com energia o trabalho, e desenvolve a série Alfabeto, derivada de Acumulações. Segundo ela: “A repetição de formas sugere um conjunto de símbolos, possíveis fundadores de uma escrita; uma leitura a mais para um objeto já pleno de conotações”. Nesse processo, Magliani reduz o gesto e abandona a cor, criando uma enigmática escrita em preto e branco.
Isolamento e solidão são a chave para a compreensão dessa fase, que tem continuidade em Retratos de ninguém e Todos, que, a rigor, são uma mesma série, na qual as figuras se rendem à impossibilidade de comunicação, tornando-se uma multidão de rostos – sem corpo. São rostos anônimos, que não falam, não pensam e nem sequer sofrem. Rostos que diferem uns dos outros, mas que são estranhamente iguais, pequenas ilhas de medo – retratos de ninguém. Ao recortar esses rostos, quase monocromáticos, Magliani acentua sua solidão e chega a um extremo tão dolorido, que eles se tornam paralisados – apáticos, olhando para o vazio. É impossível não destacar no conjunto o Autorretrato com duas orelhas (2004), no qual Magliani se integra a Todos.
Sempre inquieta, Magliani muda-se, em 2005, para São Paulo; em 2006, para Cabo Frio, voltando, ao final desse mesmo ano, a residir definitivamente no Rio de Janeiro. Com o Estudio Dezenove, participa ativamente das edições do Circuito de Ateliers, Arte de Portas Abertas, e viaja para Paris no intercâmbio entre a Associação Chave Mestra e os Ateliers d'Artistes de Belleville.
A partir de 2009 é intensa sua produção de gravuras, impressas no Estudio Dezenove por Julio Castro. Um dos sonhos, Fábula, Da noite e O poeta são algumas delas. Curiosamente, ao lado desse mergulho no universo monocromático, denso e expressionista da gravura, Magliani desenvolve a série mais colorida e lúdica de toda a sua carreira. São pinturas realizadas em estridentes cores acrílicas, recortes em madeira e objetos, que remetem à experiência de 2007, com a série Adormecida. Uma parte desse conjunto, sob o título My baby just cares for me, foi apresentada em exposição individual da artista, no Museu Imaginário, em Bruxelas, Bélgica, em projeto organizado por Julio Castro.
A última exposição realizada em vida por Magliani, apresentando a sua mais recente produção, inteiramente em preto e branco, mas reunindo xilogravuras, desenhos e pinturas, recebeu o título de Procura-se. A mostra teve apresentação de Rubens Pileggi Sá, que premonitoriamente escreveu em seu texto: “Essa é Magliani: ela é sua gravura. Ela é sua pintura. Ela é ela. Atrás de tudo isso, a elaboração. Cada goiva enfiada na placa revela uma experiência de vida. Cada passada de pincel pela tela uma afirmação: sou o que sou. Mas qual o preço que se paga para manter essa afirmação? Podemos dizer que Magliani paga o preço de ser com sua própria vida, para continuar sendo o que é: artista!"
Magliani faleceu em 21 de dezembro de 2012. Dez anos depois é publicado no jornal Latin American and Latinx Visual Culture da Universidade da Califórnia, julho/agosto, um artigo de Cecilia Fajardo-Hill, que faz um balanço de Mulheres radicais, exposição que impactou o meio artístico nacional e internacional com a apresentação da produção de artistas mulheres que a historiografia oficial apagou.[33] Nessa avaliação a autora relata erros e acertos da exposição, constatando a omissão de algumas mulheres muito radicais, que as curadoras não conheciam durante a concepção da mostra. Uma delas é Maria Lídia Magliani.
Chegou a hora de partilhar Magliani com o mundo.
Denise Mattar
Curadora
[1] Iberê Camargo em: Okky de Souza. O pincel espetáculo. Veja, n. 1.282. São Paulo, 7 abr. 1993.
[2] Magliani. A arte existe para incomodar. Zero Hora, Porto Alegre, 2 set. 1979, Revista ZH, p. 15. Acervo Documental Fundação Iberê.
[3] Cópia da carta de Iberê Camargo para Maria Lídia Magliani, Porto Alegre, 03/11/1992. Acervo Documental Fundação Iberê.
[4] Maria Lídia Magliani em: Euzébio Assumpção e Mário Maestri (coord.). Nós, os afro-gaúchos, Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1996, p. 100. Arquivo Kailã Isaias.
[5] As gordas que sufocam. Coojornal, Porto Alegre, out. 1977, p. 10. Arquivo Flavio Xavier.
[6] Beatriz Araújo Moreira da Silva foi a primeira mulher negra a formar-se na Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1964, mas não seguiu carreira. Agradecimento a Joana de Azevedo Moura, pela informação.
[7] Círio Simon. A arte no Rio Grande do Sul e o projeto da democratização entre 1945 e 1965. Círio Simon, 2015. Disponível em: <http://profciriosimon.blogspot.com.br/2015/07/arte-no-rio-grande-do-sul-11.html>. Acesso em: 15 de jan. de 2022.
[8] Ado Malagoli. Texto de apresentação da exposição de Maria Lídia Magliani, Galeria Espaço, Porto Alegre, 1966. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[9] Trecho do poema de Maria Lídia Magliani dedicado a Caio Fernando Abreu, Cavalo branco na escuridão, 28/11/1967. Catalogado junto à carta da artista para o escritor, Porto Alegre, setembro de 1967. Acervo Caio Fernando Abreu/Delfos/PUCRS.
[10] O incidente nunca foi bem explicado por Magliani, e teria ocorrido quando residiu na rua Paim, número 402, em 2005. Segundo seu amigo da vida inteira, Renato Rosa, as cartas estavam num depósito.
[11] Renato Gianuca. É a arte uma profissão? Correio do Povo, Porto Alegre, 9 nov. 1968, Caderno de Sábado, p. 15. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[12] Angélica de Moraes. Magliani, dez anos de crítica. Folha da Manhã, Porto Alegre, 5 maio 1976. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[13] Para entendimento desse período recomendamos o documentário Filme sobre um Bom Fim, roteiro e direção de Boca Migotto, de 2015, e o livro História de um Bom Fim - boemia e transgressão de um bairro maldito, de Lucio Fernandes Pedroso, de 2019.
[14] Teniza de Freitas Spinelli. Pinturas de Magliani na Gerdau. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 jun. 1974. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[15] Angélica de Moraes. Obra crítica chocou público acostumado à submissão do artista plástico. Folha da Manhã, Porto Alegre, 20 maio 1976. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[16] Celso Marques. Magliani: Pintura para desafinar o coro dos contentes. Correio do Povo, Porto Alegre, 22 maio 1976. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[17] As gordas que sufocam. Coojornal, Porto Alegre, out. 1977, p. 10. Arquivo Flavio Xavier.
[18] No caso de Lampião da Esquina não como colaboradora, mas como leitora, que enviou carta denúncia
publicada na edição n. 4, agosto, 1978, p. 17.
[19] Algumas incluídas no conjunto de textos Magliani por Magliani, no volume 2 dessa publicação.
[20] Liane dos Santos. As mulheres gordas de Magliani: um espasmo corporal. Experiência Artes, jun. 1979. Veículo não localizado. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[21] Lídia Magliani. Zero Hora, Porto Alegre, fev. 1978, Sete Dias, p. 14. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[22] João Carlos Tiburski. Entre-falas: Artistas – Maria Lídia Magliani. Boletim Informativo do MARGS, Porto Alegre, nº 32, jan./mar., 1987. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[23] Maria Lídia Magliani em: Euzébio Assumpção e Mário Maestri (coord.). Nós, os afro-gaúchos, Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1996, p. 100. Arquivo Kailã Isaias.
[24] Z. C. D. Brinquedos de armar, a nova série de Magliani. Folha da Manhã, Porto Alegre, 20 maio 1979, p. 27.
[25] Ivette Brandalise. As Figuras de Magliani. Folha da Tarde, Porto Alegre, 1979. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[26] Angélica de Moraes. Magliani adota cores vibrantes na pintura. Zero Hora, Porto Alegre, 1984. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[27] Angélica de Moraes. Catálogo da exposição coletiva "Grupo Gaúcho: pintura", Galeria Alberto Bonfiglioli, São Paulo, 1985.
[28] Folder da exposição “Discussões com Deus”, Galeria Tina Presser, Porto Alegre, 1987. Arquivo histórico do Instituto de Artes da UFRGS.
[29] Em carta de agosto de 1989 a Caio Fernando Abreu, Magliani fala sobre esse bolero: “Então, que venha lá Desesperada Mente. Gosto muito deste nome de bolero. E já fico aguardando meu possível Triângulo no Escuro.” Acervo Caio Fernando Abreu/Delfos/PUCRS.
[30] Carta de Maria Lídia Magliani para Angélica de Moraes, Tiradentes, MG, 18 ago. 1990. Arquivo Núcleo Magliani.
[31] Em 1988, Tina divorcia-se, abandona o sobrenome Presser, e adota seu sobrenome de família. A galeria passa então a se chamar Galeria Tina Zappoli.
[32] “Fui condenada ao núcleo histórico”. Entrevista concedida a Eduardo Veras. Zero Hora, Porto Alegre, 26 maio 2001, Caderno de Cultura, p. 3. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[33] Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985 foi exibida em instituições como Hammer Museum, Los Angeles (2017), Brooklyn Museum, Nova York (2018), e Pinacoteca do Estado de São Paulo (2018). A mostra foi curada por Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta.
Introdução
Em 1993, Iberê Camargo afirmava em entrevista para a revista Veja: “Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói.”[1] A frase poderia ter sido escrita por Maria Lídia Magliani, cuja obra conflui em muitos aspectos com a de Iberê. Os dois artistas optaram pela matriz expressionista, sem se importar com o fato de o movimento estar, ou não, em voga; sempre defenderam, com veemência, a pintura como forma de expressão, mesmo quando pressionados a buscar uma arte mais experimental, e seus trabalhos são contundentes, urgentes e ríspidos – como os ventos do Sul. Também gaúcha, 32 anos mais jovem, Magliani era mulher, negra e pobre, e, embora essa conjunção tenha freado muitas vezes sua produção, foi também o cadinho de sua obra, que é visceral, dolorida e pungente – “uma arte para incomodar”.[2]
Na carta de Iberê Camargo para Magliani[3], localizada no material documental da Fundação Iberê, durante a pesquisa para a exposição que agora apresentamos, e reproduzida na abertura dessa publicação, o artista, que não era pródigo em elogios, reconhece a afinidade entre a obra de ambos com as palavras: “Nós dois temos a mesma meta, o mesmo ideal, a mesma devoção.” Um eloquente endosso do mestre gaúcho para Maria Lídia Magliani e uma confirmação do acerto da Fundação Iberê em trazer para o público uma grande retrospectiva da artista.
Conheci Magliani em 1987, quando eu era diretora técnica do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e ela uma das artistas do “Panorama”, naquele ano dedicado à arte sobre papel. Na época, a exposição era um referencial das artes plásticas e a obra de Maria Lídia tinha total reconhecimento da crítica. Desde a chegada dos trabalhos fiquei impressionada com a qualidade dos desenhos e cativada pela singularidade da pessoa da artista. Em 1989, defendi junto à comissão de arte da instituição o nome de Magliani para aquisição de algumas de suas obras para o acervo, indicação que felizmente se efetivou. Muitos anos depois, em 2004, quando ambas estávamos residindo no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de fazer a apresentação de sua exposição Trabalho Manual. Naquele momento já preponderava na crítica de arte brasileira uma rejeição a obras figurativas e expressionistas, postura que perdurou por anos, e que só agora parece dar mostras de exaustão. Foi, portanto, um alento ver a receptividade com que o projeto dessa retrospectiva foi recebido por colecionadores, curadores e comissões de arte de instituições, que emprestaram as 202 obras que compõem a mostra.
A curadoria foi realizada em parceria com Gustavo Possamai, responsável pelo Acervo da Fundação Iberê, e, durante todo o processo de pesquisa e produção, tivemos em mente a seriedade de fazer esse resgate da artista. Uma responsabilidade que nos assustou no decorrer do trabalho, pela quantidade de material localizado: pinturas, desenhos, ilustrações, atuação em teatro, figurinos, cenários, textos, entrevistas, cartas, tudo de alta qualidade e em grande quantidade. Um desafio! Cientes da impossibilidade de processar todo esse material a tempo de conceber uma leitura inovadora, optamos por realizar uma mostra claramente retrospectiva apresentando, em ordem cronológica, de 1964 a 2012, as diversas fases do trabalho de Magliani, e também uma cronologia ilustrada que conta a história de sua vida e inserção no circuito de arte. Para compartilhar com o público a instigante personalidade da artista e sua multiplicidade, que tanto nos impressionou, permeamos o percurso da mostra com algumas de suas frases e fotos. A publicação que acompanha a exposição é composta por dois volumes, o primeiro deles concebido como um catálogo de obras, e o segundo reunindo entrevistas e textos de Magliani, algumas de suas cartas, textos sobre ela e sua cronologia. Como opção curatorial, todos os textos são apresentados na íntegra, sem edições. Certos de que a exposição surpreenderá o público e a crítica, Gustavo e eu temos, entretanto, a consciência de que essa mostra é apenas o princípio – a ponta de um longo fio que merece ser puxado.
Não posso deixar de agradecer a Emilio Kalil, diretor-superintendente da Fundação Iberê, o convite para essa curadoria, a todos os colecionadores e instituições que cederam suas obras, a Julio Castro, que colocou à disposição o material reunido ao longo de anos para o Núcleo Magliani, do seu Estudio Dezenove, à família da artista pela autorização para a realização da mostra, aos amigos que liberaram suas cartas, a todos os autores que cederam seus textos, especialmente Angélica de Moraes, e à Tina Zappoli, uma importante artífice desse resgate, que teve início ainda em 2019, com uma conversa nossa sobre a oportunidade dessa exposição. A Gustavo Possamai agradeço a total dedicação e o desempenho de excepcional qualidade, gratidão que estendo a toda a equipe da Fundação Iberê. Sem o apoio de todos, essa mostra não estaria acontecendo.
***
Não quero ser fatiada, dividida em porções, me aceito como soma.[4]
Maria Lídia Magliani nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, e, embora sua família tenha se mudado para Porto Alegre, em 1950, a artista trazia dessa vivência infantil uma percepção muito marcante: “Para minha escolha contribuiu muito o fato de ter nascido em 1946, em Pelotas. Lá fui tratada como filha numa casa da tradicional família pelotense, cheia de pinturas e objetos de arte. Um clima assim de nobreza rural e tapetes fofos. Depois, aos quatro anos, meus pais se mudaram para Porto Alegre e fui morar em um barraco de zinco no morro. Saí do contato com a aristocracia para a classe C, numa mudança violenta. Depois, aos poucos, passei para a classe média.”[5]
As informações sobre a família de Magliani são esparsas. Em algumas de suas entrevistas a artista conta que seu avô era italiano e pintor-decorador, fala com carinho do pai, que teria lhe dado, aos 9 anos, uma revista com reproduções de Van Gogh e uma caixa de tintas, e que também a ajudou a montar suas primeiras telas. Pouco fala sobre a mãe, o irmão, e a irmã Maria da Graça, que, entretanto, segundo vários depoimentos, chegou a ser uma cantora bastante conhecida. Mas, nas suas muitas cartas a amigos, como Caio Fernando Abreu, Glaé Macalós, Renato Rosa, Tina Zappoli e Maria José Boaventura, ela queixa-se da falta de estrutura da família, o que parece tê-la sobrecarregado de responsabilidades.
Desde criança Magliani gostava de desenhar, e o fazia bem. Em Porto Alegre, sua mãe lavava roupas para complementar o orçamento da casa, e uma das famílias que ela atendia reconheceu o talento da menina e se dispôs a ajudar. Assim, com o apoio da família Giugliani, Maria Lídia ingressou, em 1963, na Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Magliani foi a segunda mulher negra a receber o diploma do Curso de Pintura da instituição[6], mas foi a única naquela época a seguir carreira, que teve início já em 1966, ano de sua formatura. A jovem artista recebeu grande apoio de Ado Malagoli, seu professor, que a incentivou a realizar uma exposição individual. Foi grande a influência de Malagoli sobre Magliani, e, se essa importância, ao que se saiba, nunca foi proclamada pela artista, ela está presente tanto na produção da década de 1960 quanto em posturas que Magliani assumiria em toda a sua carreira.
Ado Malagoli mudou-se para Porto Alegre em 1952 e participou da reestruturação do ensino de pintura na Escola de Belas Artes no Rio Grande do Sul e da criação do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, que, desde 1977, leva o seu nome. Formou toda uma geração de pintores que estão hoje entre os principais artistas gaúchos.
Nascido em 1906, ele estudou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Nos anos 1920, conviveu com Volpi e Mario Zanini e Rebolo, e, em 1931, participou da criação do Núcleo Bernardelli no Rio de Janeiro. Com o prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional, viajou, em 1942, para os Estados Unidos, onde estudou no Fine Arts Institute, da Universidade de Colúmbia e no Brooklin Museum. Malagoli era, portanto, um representante da segunda fase do modernismo, caracterizada pela retomada de alguns dos valores clássicos, mas sem a rigidez acadêmica; o chamado Retorno à Ordem. Segundo o Prof. Círio Simon: “Dedicado, até as raias da ascese, à Pintura a óleo, [Malagoli] não admitia que nenhuma outra técnica concorresse com este meio, até que esta outra técnica provasse a sua capacidade de manter o ato criativo do artista intacto ao longo do maior tempo possível.” E, embora muito conhecido por suas paisagens, ele preferia a figura humana: “A paisagem é bela. Mas a figura humana é tudo. Seus contornos, permitindo uma interpretação humana daquilo que se pinta, os traços psicológicos, característicos de cada um, nada é mais sublime.”[7]
São atitudes frente ao trabalho que se perpetuarão na produção de Magliani, que preferia o óleo à tinta acrílica, e que sempre proclamou a primazia da figura humana como tema. Nas obras da artista, da década de 1960, ela herda de seu professor o uso de tons escuros aplicados em grandes massas e a materialidade da tinta, aplicada com texturas. Entusiasmado com seu trabalho, Malagoli assina o texto de apresentação da exposição individual que ela faz em 1966 na Galeria Espaço: “Suas composições, com luas mórbidas a se destacarem sobre fundos e riscados de frases poéticas, apresentam estranhas e esguias figuras humanas reduzidas a pura expressão formal. Possuindo uma visão própria da realidade sensível, renuncia aos efeitos superficiais, à atração fácil do colorido pujante e decorativo e difunde em suas obras certo encanto espiritual de transcendente simplicidade.”[8]
Um clima melancólico e lírico caracteriza essa primeira produção de Magliani. Suas figuras estáticas e pálidas surgem como espectros sobre o fundo negro. Elas têm um ar perdido, e, mais do que portar as flores em suas mãos, parecem se segurar nelas, como âncoras para seu desamparo. A partir de 1967, corpos e cores vão se insinuando no trabalho, ainda denso e escuro, e a inserção das frases poéticas é riscada sobre a tinta, de forma quase tosca, criando uma escrita vaga e misteriosa. Na exposição estão reunidas 11 obras desse período, com frases enigmáticas como: A espera do canto (c.1965/1966), O mesmo corpo com som de primavera (1966), Autorretrato na nuvem (1966), Eu tenho a flor (1967), Eu sou a inútil pureza nascida de dois silêncios (1967).
Em 1967, Magliani fez pós-graduação com Ado Malagoli e formação pedagógica pela Faculdade de Filosofia, e nesse ano conheceu Caio Fernando Abreu. Tornaram-se inseparáveis e estabeleceram uma sólida amizade que continuou até o falecimento do escritor – apesar das constantes mudanças de ambos. A relação entre eles, tão frutífera intelectualmente, foi, entretanto, um permanente motivo de angústia para a artista. Encantada pela afinidade de ideias e sentimentos que compartilhava com Caio, Magliani sempre teve a consciência que ele a via apenas como uma querida amiga – mas isso doía. “Não tenho canto nem palavra/ Que cobrir este vazio/ Não te encontro, não me vês/ E evitando e esperando/ De medo e espera fumamos”, escreve ela para Caio, numa poesia dedicada a ele, em carta desse mesmo ano.[9]
Magliani era uma missivista contumaz, escrevia cartas constantemente para os amigos próximos, e, parafraseando Mário de Andrade, sofria de “gigantismo epistolar”. Um incêndio destruiu as cartas recebidas por ela[10], restando apenas a sua palavra nos arquivos dos amigos. A leitura de sua correspondência revela uma personalidade complexa, rascante e agressiva, mas também divertida e amorosa. Muito pessoais, suas cartas evidenciam a instabilidade financeira que sempre a acompanhou, a carência afetiva da qual se ressentia e uma inquietude profunda que a levava constantemente a mudar de cidade e de endereços, em busca de algo que jamais encontrou.
Em 1968 há uma mudança significativa na obra da artista. Diz ela em entrevista da época: "Mudou muito, em um ano, o caráter da minha pintura. Já não vejo o lirismo que me atingiu em outro tempo. Agora sou uma delatora do desencontro. Desencontro sob todas as formas, do homem com o homem, do homem com seu mundo, dominado pela máquina. A denúncia da ausência de comunicação é o meu tema atual."[11] É uma fase de passagem, um momento que se estende até 1970. Alguns fatores externos parecem ter contribuído para essa mudança: a visita à IX Bienal que a apresentou à Pop Art, e o período de quatro meses que residiu em São Paulo. Diz ela: “Eu precisava conciliar minha fase lírica com a desumanização que tinha visto. Foi então que surgiu minha série Nesta Cidade Cinzenta, onde elaborava, em dois planos, elementos como faixas de segurança, relógios e chaves”.[12]
Entre as obras desse período, apresentadas na exposição, há trabalhos como Segundo canto para o amigo triste, ainda próximos de sua fase lírica, mas já incorporando características da Pop-Art, que se tornam mais evidentes em As portas fechadas da cidade, certamente um trabalho da série Nesta Cidade Cinzenta, que mescla madeira e pintura criando relevos, e que Magliani chama de esculpintura. Ainda nessa vertente, há telas como Sem título (1969) e Sem título (1970), nas quais a artista utiliza cores chapadas e puras, como branco, vermelho e azul, repetindo nas telas, em dois planos, os elementos de suas pinturas-objetos.
Embora jamais tenha deixado de desenhar e pintar, há uma sensível diminuição da produção plástica de Magliani entre 1970 e 1974, devido às atividades que ela desenvolve em teatro. Foi um momento importante da atividade cultural na cidade de Porto Alegre, que fervilhava, apesar da repressão e da censura. A artista atuou como protagonista e atriz coadjuvante em diversos espetáculos, criou cenários e figurinos, e, ao lado do ator Francisco Aron, com quem manteve longa, mas descontínua relação afetiva, criou um espaço expositivo no alternativo Teatro Aldeia 2, no mítico bairro Bom Fim.[13] Não faz parte do escopo deste texto analisar a atividade teatral de Magliani, mas podemos dizer que ela trabalhou ao lado dos mais importantes diretores, autores e atores desse período, tais como Delmar Mancuso, Fernando de Rojas, Luís Artur Nunes, Renato Rosa, Ivo Bender, Paulo Albuquerque, Romanita Disconzi, Irene Brietzke, Sandra Dani, Suzana Saldanha, entre muitos outros. Apesar do sucesso, Magliani sempre declarou que sua experiência teatral era apenas “um pincel a mais”, e uma forma de compreender melhor o espaço pictórico.
Em 1972, sem abandonar o teatro, Magliani passou a trabalhar como ilustradora e diagramadora da Revista ZH do jornal Zero Hora. Nesse ano, realiza a série Andando, que apresenta na Mostra a dois, exposição conjunta com Rosane Silva, na Galeria Gerdau. A mudança no trabalho da artista chama a atenção de Teniza Spinelli, que escreve, no Correio do Povo: “Seu trabalho anterior, tantas vezes lírico, complementado por frases poéticas, dá lugar agora, em sua maturidade, a uma intensa crítica social, focalizando uma das situações mais angustiantes da vida do homem contemporâneo – a falta de tempo, a pressa, a correria sem sentido que traz consigo a alienação das coisas essenciais da vida.”[14] Andando é uma série
que imaginamos ter sido pequena, pois poucos trabalhos dela restaram, como Sem título (1973).
A criação de séries é um procedimento que a artista usa desde o início de seu trabalho, e que manterá até o final da carreira. Nesse primeiro momento, os títulos parecem substituir as frases poéticas, tornando-se um elemento importante, que evidencia a vinculação com a palavra subjacente à produção pictórica da artista. Vale observar que as séries saem umas das outras, se sucedendo, se sobrepondo, se encerrando e retornando, num produtivo (mas impreciso) processo de criação, devoração, entrelaçamento e sequência. Em 1975, apesar de estar mais voltada para a ilustração e para a criação de cenários, Magliani inicia a série Objetos de cena, que será recorrente em sua produção.
O ano de 1976 marca uma virada fundamental no trabalho de Maria Lídia Magliani. É o momento no qual ela dá um passo significativo na definição de seu repertório, ao qual será fiel apesar das consequências. Convidada pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul a realizar uma exposição comemorativa dos seus dez anos de atividade artística, Magliani apresenta Anotações para uma história, um conjunto de figuras de olhos vazados e expressão perdida, cérebros comandados por fios e movimentos decididos por cordas. Um rascante retrato da dependência do homem às conjunções de poder e ao controle da mídia. Foi um choque! A sociedade gaúcha não estava preparada para o que viu, e rejeitou com veemência o trabalho.
A imprensa prontamente colocou-se ao lado de Magliani. No dia 20 de maio de 1976, Angélica de Moraes abria a sua matéria para a Folha da Manhã com uma frase da artista: “Não sei por que as pessoas se assustam tanto com a ficção. A realidade é muito pior”, seguida de uma incisiva análise da mostra: “Sua exposição no Museu de Arte do Rio Grande do Sul é um corte irônico e cruel de uma sociedade onde o mecanismo do poder esmaga o cotidiano e o individual. É a representação plástica de todo um contexto repressivo que as pessoas sofrem, mas não querem admitir conscientemente que sofrem”. Complementando a matéria, Angélica comentava: “O choque causado no público chocou também a artista. Ela esperava um maior nível de consciência das pessoas”, e finaliza entrevistando os artistas Danúbio Gonçalves, Wilson Alves, Carlos Carrion de Brito Velho e Paulo Porcella, todos solidários ao teor crítico da obra de Magliani e impressionados com a rejeição do público.[15]
No Correio do Povo, de 22 de maio, o crítico Celso Marques publicava uma longa matéria intitulada: “Para desafinar o coro dos contentes”, na qual escreveu: “Cada uma de suas telas é um soco na cara do marchand e do comprador de quadros, é uma cuspida mal comportada no tapete da sala de visitas, uma intrusão incômoda da violência e da brutalidade no ‘recesso do lar’, um dedo na consciência cotidiana adormecida e alienada que diariamente lava as feridas e convive com a injustiça, a estupidez, o absurdo, a solidão e o desamor, resignadamente. Mais do que um protesto inútil e desesperado, a pintura de Magliani expressa o trágico da condição humana e revela os subterfúgios utilizados pelo senso comum e o bom senso na tentativa de negar essa condição.” Marques observava ainda o preço pago por Magliani por sua audácia: um total fracasso de vendas.[16]
O revés financeiro não demoveu Magliani, que, no ano seguinte, levou ainda mais longe sua proposta realizando a série Elas, com grotescas mulheres seminuas, imensamente gordas, que ela considerava uma espécie de “retrato interior da humanidade”. Um desenho dessa série valeu à artista o primeiro prêmio do I Salão de Desenho do Rio Grande do Sul em 1977. Participaram do júri o crítico paulista Jacob Klintowitz e o crítico carioca Marc Berkowitz, que, surpreendidos pela força do trabalho da artista, abriram para Magliani as portas de salões e exposições fora do Rio Grande do Sul.
Em setembro desse ano a artista apresentou um conjunto desses trabalhos numa mostra individual na galeria do Instituto dos Arquitetos do Brasil, em Porto Alegre. Em entrevista da época, dizia ela: “Quando eu pinto as minhas gordas, quero que elas saiam da tela e sufoquem o espectador. É um clima como daquela música do Belchior (A Palo Seco): ‘Quero que esse canto torto/caia feito faca/em cima de você’. [...] “Eu gostaria de dizer às pessoas que veem meus quadros: ‘Sinto muito, senhores, não é agradável’”[17]. Apesar da contundência de sua obra ser maior do que o fora no ano anterior, o aval de críticos do eixo Rio-São Paulo cumpriu importante papel e Magliani viu seu trabalho começar a ser reconhecido em casa.
Podemos dizer que nesse momento Magliani estabelece definitivamente seu repertório, tanto imagético quanto construtivo. Seus trabalhos expressam as ansiedades e medos que permeiam os anos 1970, aliados aos fantasmas pessoais da artista. Seus retratos, viscerais, macabros e inquietantes, emitem gritos, que soam abafados atrás de máscaras, e os rostos obesos parecem sempre prestes a explodir num mar de gordura. Os corpos calipígios são representados aos pedaços, torturados por calcinhas, meias, sutiãs e cintas-ligas, e apertados em espaços claustrofóbicos. A paleta da artista é desconcertante, pois é paradoxalmente sombria e candente, as imagens são voluptuosas, mas não eróticas, e os corpos amputados parecem constituídos de diferentes pedaços, como colagens.
A adoção de uma temática tão radical parece render tributo à Magliani ilustradora. Trabalhando em redações, amiga de jornalistas e intelectuais, ela participou do dia a dia da imprensa, e também de publicações alternativas, como o jornal Versus, de cunho político, revista Tição, veículo de combate ao racismo, e Lampião da Esquina[18], que abordava os preconceitos contra as comunidades hoje chamadas de LGBTQI+. Essa vivência foi, sem dúvida, fundamental para a abordagem contundente que ela adotou na sua pintura, mas, apesar de pessoalmente engajada na luta pelos direitos humanos, Magliani não admitia que sua obra fosse interpretada como política ou identitária. Era intransigente nessa questão. São muitas as declarações dela a esse respeito.[19] “Meu interesse é pelo que as pessoas sentem, não pelo que elas pensam”[20] [...] “Tenho preocupação com a vida, com a humanidade em geral. Nada a ver com raça específica, religião, nada. Uma coisa que é comum a todo mundo. A essência humana é igual para todos. O que interessa é isso. Todos os outros acréscimos: nacionalidade, cor, ideologia, credo, preferência sexual, time de futebol, tudo isso é acessório.”[21]
Dentro dessa atitude de defesa da autonomia da sua obra, acima de qualquer circunstância, está também a rejeição a todo tipo de abordagem referenciando seu trabalho à negritude. “Ser uma pessoa de cor negra não interfere em nada na minha pintura e não entendo a sempre presente preocupação das pessoas com este aspecto. [...] Por que sempre me perguntam como é ser negra e ser artista? Ora, é igual ao ser de qualquer outra cor. As tintas custam o mesmo preço, os moldureiros fazem os mesmos descontos e os pincéis acabam rápido do mesmo jeito para todo mundo.”[22] A posição de Magliani sempre foi candente nessa questão, afirmava, desassombradamente, que era contrária a guetos, e também pagou o preço por essa atitude. Na importante publicação da UFRGS, Nós, os afro-gaúchos, de 1997, fez a seguinte declaração; quase um manifesto: “Sou brasileira, nascida no Rio Grande do Sul. Isto é o bastante. Não quero escolher uma raça em função da cor da minha pele. Não quero ser fatiada, dividida em porções, me aceito como soma."[23] O artigo está reproduzido na íntegra no volume de textos, e merece uma leitura atenta.
Em 1979, Magliani apresenta, na Galeria Independência, em Porto Alegre, a exposição Brinquedo de armar, reunindo desenhos e pinturas da série, que desenvolverá por um bom tempo. Declarava a artista: "Acho que a mulher é o brinquedo mais armado e desarmado constantemente. Mas considero que todo mundo é, ou pode ser, um brinquedo de armar. A forma da mulher se presta mais à luz e ao volume. Mas o homem também é um brinquedo de armar."[24] Nesses trabalhos, que derivam diretamente da série Elas, os corpos decepados tornam-se ainda mais assustadores. Suas formas aludem à impotência do ser humano, que aceita ser usado, sem opor resistência, seu corpo transformado em tripas expostas que se retorcem, enrolam e emaranham, até formar nós. Nas palavras de Ivette Brandalise: "Mas já não há mais nada. Nenhuma resistência, nenhum sofrimento, nenhuma expectativa, nenhum sinal de luta. Não houve luta. Houve uma concordância passiva, um deixar acontecer, uma morte interior que não permite sequer o recurso da própria morte.”[25] Ainda nesse ano a obra de Magliani participa de exposições em Belo Horizonte, São Paulo, Estados Unidos, com destaque para o tríptico que apresenta no Panorama da Arte Atual Brasileira – Pintura, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A mostra da Fundação Iberê reúne um significativo conjunto de 19 obras, de 1977 a 1979, que evidencia a potência da produção da artista nesse período.
Em fevereiro de 1980, estimulada pela recepção positiva de sua obra, Magliani muda-se para São Paulo. Logo produz as séries Pin-Up e Encontros numa esquina, mas é em Retratos falados que seu trabalho se reveste de novas e significativas características. A mudança veio a partir de uma série de desenhos realizados com lápis de cera nos quais a artista começou a usar a cor, que foi adquirindo força e se tornou imperiosa. Magliani abandona então os tons sépia, passando a usar cores vibrantes e ácidas, mescla lápis de cor, de cera, pastel, grafite, e até materiais de maquiagem, como corretivo e delineador, e muda também o tratamento da pintura, usando a tinta acrílica e adotando pinceladas ágeis e gestuais, como traços de desenho, num processo que imprime movimento ao trabalho. As obras retratam figuras em close-up, que invadem a tela inteira, nas quais rostos e detalhes são vistos de uma distância em que nada escapa ao olhar. Uma proximidade reveladora que confirma a visão do poeta de que “De perto, ninguém é normal”.
Suas obras participam de exposições por todo o Brasil, mas Magliani não perde contato com Porto Alegre, realizando, em 1984, uma exposição individual na Galeria Tina Presser, na qual, além dos Retratos falados, apresenta pela primeira vez algumas de suas figuras recortadas, trabalho que será desenvolvido com mais continuidade em outro período, e a inquietante série Crônica do amanhecer. São trabalhos quase sempre em pequenos formatos que mostram casais na cama, retratados sem o menor erotismo, perpassados por profundo constrangimento e assombro. Um desconforto agudo emana dessas obras, com mulheres de olhos arregalados de espanto, e nas quais os homens aparecem sempre vestidos, pois segundo Magliani: “Os homens nunca se despem, nunca se entregam”.[26]
Em 1985, a artista participa da exposição coletiva Grupo Gaúcho: pintura, realizada na Galeria Alberto Bonfiglioli, em São Paulo. No texto de apresentação diz Angélica de Moraes: “Dilacerada e trágica, a arte de Magliani discute as relações humanas e suas dificuldades. O universo de sua pintura é a multidão anônima das ruas, onde flagra as expressões e decepções das pessoas que trafegam no limite entre a submissão e a resistência. [...] Fiel ao expressionismo durante toda a carreira, mesmo quando os modismos apontavam em outra direção, ela não fez dessa opção uma fórmula."[27] No mesmo ano Magliani integra o núcleo Expressionismo no Brasil: Heranças e Afinidades, sala especial da XVIII Bienal Internacional de São Paulo. Fazem parte da exposição da Fundação Iberê duas das três obras apresentadas pela artista na emblemática mostra.
Em 1987, Magliani realiza, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, a retrospectiva Auto-retrato dentro da jaula, que marca os 20 anos de sua carreira. Podemos dizer que é um momento de desagravo. Dez anos depois da rejeição que sofrera, Magliani é acolhida pelo público de sua cidade como uma estrela, a mais importante artista gaúcha de sua geração.
A curadoria foi realizada por Chô Dornelles, que já vinha fazendo um trabalho de catalogação da obra da artista, e causou impressão à própria Magliani, que, em seu depoimento para o catálogo da mostra, disse: “Gosto de ver este resumo do pequeno caminho percorrido, um período nascendo dentro do outro, gosto da direção para onde aponta. E olho este começo como etapas do sempre retomar, reinventar, recomeçar. Um quadro de cada cor, um quadro com todas as cores. Ou preto e branco”. Na mesma publicação, Evelyn Ioschpe, então diretora do MARGS, observava: “O olho da pintora é nervoso, a obra fricciona a emoção, os medos, os pudores. É, sim, uma obra despudorada e destemida. Não teme, ao menos que lhe digam: não gosto. Não precisa que gostem. Precisa que a fatura da tela solape a máscara e que o espectador – ele também – deixe cair a sua e se veja vendo a tela, isto é, aprecie o espetáculo de si mesmo sem máscara."
A repercussão junto à crítica foi grande, com matérias de Angélica de Moraes, Maria Amélia Bulhões e Carlos Scarinci, que escreveu um longo texto, com o expressivo título: Um animal debaixo da pele, fora da jaula, analisando os vários momentos da obra da artista. João Carlos Tiburski fez uma entrevista para o Boletim do MARGS, incluindo perguntas do público, de Milton Kurtz e de Armando Almeida, um documento muito importante sobre o pensamento de Magliani.
No mesmo período, Tina Presser apresenta uma exposição individual da artista em sua galeria e, adotando uma prática pioneira no circuito de arte, coordena a continuidade da mostra para a galeria Espaço Capital, em Brasília, e para a Paulo Figueiredo, em São Paulo, na época, a mais importante galeria paulista para a arte contemporânea. No texto do catálogo do MARGS, Magliani já falava sobre sua produção mais recente: Discussões com Deus, e, ainda em 1987, apresentou em Pelotas, sua cidade natal, um conjunto de obras dessa série. Segundo a artista: “Discussões com Deus é o resultado do trabalho desenvolvido nos últimos dois anos, baseado numa série de estudos de observação da figura sentada. A partir destas anotações procurei desdobrar a imagem em diversos estados, num procedimento incorporado da gravura. Trabalhando com vários materiais, exagerando a cor ou prescindindo dela, procuro climas diferentes agindo sobre o mesmo tema – modos desiguais de ver de um mesmo ângulo – como múltiplas opiniões a respeito do mesmo assunto.”[28]
É um momento no qual a obra de Magliani conversa de perto com a de Francis Bacon, atingindo o ápice de contundência e visceralidade da pintora. Retorcidos e distorcidos, corpos e rostos se desfazem e refazem, em movimentos bruscos. Obras como Retrato de Davi, A namorada vai chorar, Figura sorridente, integram na exposição um conjunto de 20 obras, das quais é impossível escapar ileso! A artista leva a tensão ao extremo e esgarça suas forças – desesperada_mente.[29]
Esse período, de 1980 a 1988, o mais marcante da carreira da artista, coincide com o tempo em que ela residiu em São Paulo. Entretanto, Magliani nunca se adaptou inteiramente, sentindo-se sempre oprimida pela cidade, e, apesar de festejada pela crítica, não obteve um retorno financeiro que assegurasse sua tranquilidade. Em parte porque sempre destinou fatia significativa de seus ganhos para ajudar a família, mas, principalmente, porque seu trabalho desafiante e incômodo, nunca se prestou a decorar ambientes. Magliani também não tinha a mínima paciência para jogos sociais e, em suas cartas, descreve com acidez o circuito de arte. Impossível não acrescentar que ela era mulher, negra e pobre, e que isso, certamente, pesou na monetização de seu trabalho.
Assim, em 1989, Magliani decide sair de São Paulo e vai residir em Tiradentes, Minas Gerais, buscando uma vida mais tranquila e confortável. Em agosto de 1990, em carta para Angélica de Moraes, anuncia a realização de uma nova série: “Já é uma loucura ver a montanha com todas aquelas cores, quando se as vê separadas é difícil de acreditar que seja real. Lilás / grafite / marrom café, ocre amarelo claro / terras avermelhadas, laranja, rosa escuro, vinho. Estou acrescentando à massa de papel e serragem para as cabeças. Elas estão maiores e são feitas em torno de umas madeiras antigas que encontrei debaixo de umas garrafas não tão antigas (e vazias). E estou fazendo esboços para as telas onde vou usar apenas estes tons. [...] O nome da pintura série (desenhos / objetos e pinturas) é ‘em Gerais’. És a primeira a saber.”[30]
De fato, em novembro desse ano, Magliani apresenta na Galeria Tina Zappoli, a sua nova série em Gerais. Deixando de lado os traços nervosamente coloridos da acrílica, Magliani volta ao óleo, para usar os pigmentos terrosos de Minas. É uma fase um tanto indefinida, na qual os desdobramentos de imagem parecem perder rapidez, tornando-se mais densos e estáticos. A artista também envereda por novas propostas, como Retrato com pesadelo, um trabalho sem a composição sobrecarregada característica de sua produção, e que evoca a emblemática imagem da menina Kim Phuc e o horror do Vietnã. Mas, as cabeças em madeira e em papel machê, são, sem dúvida, a mais marcante produção desse momento. A artista já havia anteriormente realizado objetos, mas agora alcança excelência. Saindo das telas e adquirindo corporeidade as cabeças tornam-se ainda mais insólitas e assustadoras. O conjunto desses trabalhos apresentados na exposição evidencia como Magliani contrapõe diferentes texturas: ela usa parcimoniosamente a pintura apropriando-se das imperfeições das madeiras antigas; modela com perfeição o papel machê, mas retém as marcas que lhe interessam, e usa o verso dos trabalhos para desvendar segredos, revelando o que está escondido.
No período em que vive em Tiradentes, Magliani integra-se aos artistas da cidade, ajudando a fundar o Grupo LOA – Largo do Ó Arte, do qual participa ativamente. É uma fase na qual escreve muito aos amigos e nessa correspondência fala de sua vontade de dedicar-se à pintura, plantar e cuidar de sua “casa de bonecas”. Nos primeiros tempos encanta-se com tudo, mas, sua inquietude logo se manifesta. Aos poucos passa a detestar tudo o que a atraíra, o pequeno tamanho da cidade, o fato de encontrar sempre as mesmas pessoas e a vocação turística de Tiradentes. Em 1996 ela decide voltar a morar em São Paulo.
O período de Tiradentes não deu bons resultados para Magliani, o afastamento das grandes cidades não trouxe a tranquilidade que ela esperava, pois se viu rodeada de demandas domésticas que a atrapalhavam; ao mesmo tempo, por não estar em São Paulo, deixa de ser chamada a participar de exposições, diminuindo sua visibilidade, o que formou um círculo vicioso de apagamento. Outro fator a considerar é que nos anos 1990, a pintura perde consideravelmente seu lugar para a arte conceitual, para experimentos e instalações, aos quais Magliani nunca aderiu.
Na segunda fase de sua produção em Minas, a artista realiza a série Madrugada insone, que apresenta, em 1992, na Galeria Tina Zappoli[31], em mostra conjunta com Maria Tomaselli. Segundo a artista, o trabalho surgiu de suas noites de insônia, quando desistiu de procurar o sono e começou a pesquisar o efeito da luz noturna sobre os objetos do quarto. Essa pesquisa se estende por algum tempo e pode ser vista nas obras Salomé sorri (1993) e Personagens da Insônia II (1993). É também o momento no qual a artista inicia a série Acumulações, na qual reúne elementos do cotidiano explorando suas múltiplas possibilidades de forma. Nela Magliani cria pilhas de objetos, repetidos com pequenas variações, como bules, xícaras ou bolsas, acentuando o excesso que caracteriza nossa sociedade consumista. Para isso usa uma estética também excessiva, com pinceladas ultra coloridas e flamejantes. Todos os elementos parecem dançar.
Entre 1996 e 1999 Magliani reside sucessivamente em São Paulo, no Rio e em Porto Alegre, e, embora não pare de pintar e faça algumas exposições individuais, todos esses deslocamentos diminuem sua produção. Finalmente, em 2000, fixa-se no Rio de Janeiro, em Santa Teresa, e passa a produzir seu trabalho no Estudio Dezenove, ao lado de Julio Castro e outros artistas. Já no ano seguinte, apresenta a exposição Auto-Retrato, na Galeria Tina Zappoli, reunindo 12 obras de sua produção recente. Na ocasião, dá uma entrevista para Eduardo Veras, na qual expressa seu desencanto com os rumos do circuito de artes plásticas: “Conheci muitos pintores nos últimos 20 anos e, embora eu saiba que eles continuam trabalhando, não ouço mais falar neles. [...] São lembrados apenas em retrospectivas do tipo Artistas da Década de 70. [...] Estamos condenados ao ‘núcleo histórico’, uma espécie de aposentadoria compulsória”.[32]
O trabalho integrado ao Estudio Dezenove leva Magliani, em 2002, a fazer sua primeira viagem à Europa. Nesse período Magliani retoma com energia o trabalho, e desenvolve a série Alfabeto, derivada de Acumulações. Segundo ela: “A repetição de formas sugere um conjunto de símbolos, possíveis fundadores de uma escrita; uma leitura a mais para um objeto já pleno de conotações”. Nesse processo, Magliani reduz o gesto e abandona a cor, criando uma enigmática escrita em preto e branco.
Isolamento e solidão são a chave para a compreensão dessa fase, que tem continuidade em Retratos de ninguém e Todos, que, a rigor, são uma mesma série, na qual as figuras se rendem à impossibilidade de comunicação, tornando-se uma multidão de rostos – sem corpo. São rostos anônimos, que não falam, não pensam e nem sequer sofrem. Rostos que diferem uns dos outros, mas que são estranhamente iguais, pequenas ilhas de medo – retratos de ninguém. Ao recortar esses rostos, quase monocromáticos, Magliani acentua sua solidão e chega a um extremo tão dolorido, que eles se tornam paralisados – apáticos, olhando para o vazio. É impossível não destacar no conjunto o Autorretrato com duas orelhas (2004), no qual Magliani se integra a Todos.
Sempre inquieta, Magliani muda-se, em 2005, para São Paulo; em 2006, para Cabo Frio, voltando, ao final desse mesmo ano, a residir definitivamente no Rio de Janeiro. Com o Estudio Dezenove, participa ativamente das edições do Circuito de Ateliers, Arte de Portas Abertas, e viaja para Paris no intercâmbio entre a Associação Chave Mestra e os Ateliers d'Artistes de Belleville.
A partir de 2009 é intensa sua produção de gravuras, impressas no Estudio Dezenove por Julio Castro. Um dos sonhos, Fábula, Da noite e O poeta são algumas delas. Curiosamente, ao lado desse mergulho no universo monocromático, denso e expressionista da gravura, Magliani desenvolve a série mais colorida e lúdica de toda a sua carreira. São pinturas realizadas em estridentes cores acrílicas, recortes em madeira e objetos, que remetem à experiência de 2007, com a série Adormecida. Uma parte desse conjunto, sob o título My baby just cares for me, foi apresentada em exposição individual da artista, no Museu Imaginário, em Bruxelas, Bélgica, em projeto organizado por Julio Castro.
A última exposição realizada em vida por Magliani, apresentando a sua mais recente produção, inteiramente em preto e branco, mas reunindo xilogravuras, desenhos e pinturas, recebeu o título de Procura-se. A mostra teve apresentação de Rubens Pileggi Sá, que premonitoriamente escreveu em seu texto: “Essa é Magliani: ela é sua gravura. Ela é sua pintura. Ela é ela. Atrás de tudo isso, a elaboração. Cada goiva enfiada na placa revela uma experiência de vida. Cada passada de pincel pela tela uma afirmação: sou o que sou. Mas qual o preço que se paga para manter essa afirmação? Podemos dizer que Magliani paga o preço de ser com sua própria vida, para continuar sendo o que é: artista!"
Magliani faleceu em 21 de dezembro de 2012. Dez anos depois é publicado no jornal Latin American and Latinx Visual Culture da Universidade da Califórnia, julho/agosto, um artigo de Cecilia Fajardo-Hill, que faz um balanço de Mulheres radicais, exposição que impactou o meio artístico nacional e internacional com a apresentação da produção de artistas mulheres que a historiografia oficial apagou.[33] Nessa avaliação a autora relata erros e acertos da exposição, constatando a omissão de algumas mulheres muito radicais, que as curadoras não conheciam durante a concepção da mostra. Uma delas é Maria Lídia Magliani.
Chegou a hora de partilhar Magliani com o mundo.
Denise Mattar
Curadora
[1] Iberê Camargo em: Okky de Souza. O pincel espetáculo. Veja, n. 1.282. São Paulo, 7 abr. 1993.
[2] Magliani. A arte existe para incomodar. Zero Hora, Porto Alegre, 2 set. 1979, Revista ZH, p. 15. Acervo Documental Fundação Iberê.
[3] Cópia da carta de Iberê Camargo para Maria Lídia Magliani, Porto Alegre, 03/11/1992. Acervo Documental Fundação Iberê.
[4] Maria Lídia Magliani em: Euzébio Assumpção e Mário Maestri (coord.). Nós, os afro-gaúchos, Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1996, p. 100. Arquivo Kailã Isaias.
[5] As gordas que sufocam. Coojornal, Porto Alegre, out. 1977, p. 10. Arquivo Flavio Xavier.
[6] Beatriz Araújo Moreira da Silva foi a primeira mulher negra a formar-se na Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1964, mas não seguiu carreira. Agradecimento a Joana de Azevedo Moura, pela informação.
[7] Círio Simon. A arte no Rio Grande do Sul e o projeto da democratização entre 1945 e 1965. Círio Simon, 2015. Disponível em: <http://profciriosimon.blogspot.com.br/2015/07/arte-no-rio-grande-do-sul-11.html>. Acesso em: 15 de jan. de 2022.
[8] Ado Malagoli. Texto de apresentação da exposição de Maria Lídia Magliani, Galeria Espaço, Porto Alegre, 1966. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[9] Trecho do poema de Maria Lídia Magliani dedicado a Caio Fernando Abreu, Cavalo branco na escuridão, 28/11/1967. Catalogado junto à carta da artista para o escritor, Porto Alegre, setembro de 1967. Acervo Caio Fernando Abreu/Delfos/PUCRS.
[10] O incidente nunca foi bem explicado por Magliani, e teria ocorrido quando residiu na rua Paim, número 402, em 2005. Segundo seu amigo da vida inteira, Renato Rosa, as cartas estavam num depósito.
[11] Renato Gianuca. É a arte uma profissão? Correio do Povo, Porto Alegre, 9 nov. 1968, Caderno de Sábado, p. 15. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[12] Angélica de Moraes. Magliani, dez anos de crítica. Folha da Manhã, Porto Alegre, 5 maio 1976. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[13] Para entendimento desse período recomendamos o documentário Filme sobre um Bom Fim, roteiro e direção de Boca Migotto, de 2015, e o livro História de um Bom Fim - boemia e transgressão de um bairro maldito, de Lucio Fernandes Pedroso, de 2019.
[14] Teniza de Freitas Spinelli. Pinturas de Magliani na Gerdau. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 jun. 1974. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[15] Angélica de Moraes. Obra crítica chocou público acostumado à submissão do artista plástico. Folha da Manhã, Porto Alegre, 20 maio 1976. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[16] Celso Marques. Magliani: Pintura para desafinar o coro dos contentes. Correio do Povo, Porto Alegre, 22 maio 1976. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[17] As gordas que sufocam. Coojornal, Porto Alegre, out. 1977, p. 10. Arquivo Flavio Xavier.
[18] No caso de Lampião da Esquina não como colaboradora, mas como leitora, que enviou carta denúncia
publicada na edição n. 4, agosto, 1978, p. 17.
[19] Algumas incluídas no conjunto de textos Magliani por Magliani, no volume 2 dessa publicação.
[20] Liane dos Santos. As mulheres gordas de Magliani: um espasmo corporal. Experiência Artes, jun. 1979. Veículo não localizado. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[21] Lídia Magliani. Zero Hora, Porto Alegre, fev. 1978, Sete Dias, p. 14. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[22] João Carlos Tiburski. Entre-falas: Artistas – Maria Lídia Magliani. Boletim Informativo do MARGS, Porto Alegre, nº 32, jan./mar., 1987. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[23] Maria Lídia Magliani em: Euzébio Assumpção e Mário Maestri (coord.). Nós, os afro-gaúchos, Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1996, p. 100. Arquivo Kailã Isaias.
[24] Z. C. D. Brinquedos de armar, a nova série de Magliani. Folha da Manhã, Porto Alegre, 20 maio 1979, p. 27.
[25] Ivette Brandalise. As Figuras de Magliani. Folha da Tarde, Porto Alegre, 1979. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[26] Angélica de Moraes. Magliani adota cores vibrantes na pintura. Zero Hora, Porto Alegre, 1984. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[27] Angélica de Moraes. Catálogo da exposição coletiva "Grupo Gaúcho: pintura", Galeria Alberto Bonfiglioli, São Paulo, 1985.
[28] Folder da exposição “Discussões com Deus”, Galeria Tina Presser, Porto Alegre, 1987. Arquivo histórico do Instituto de Artes da UFRGS.
[29] Em carta de agosto de 1989 a Caio Fernando Abreu, Magliani fala sobre esse bolero: “Então, que venha lá Desesperada Mente. Gosto muito deste nome de bolero. E já fico aguardando meu possível Triângulo no Escuro.” Acervo Caio Fernando Abreu/Delfos/PUCRS.
[30] Carta de Maria Lídia Magliani para Angélica de Moraes, Tiradentes, MG, 18 ago. 1990. Arquivo Núcleo Magliani.
[31] Em 1988, Tina divorcia-se, abandona o sobrenome Presser, e adota seu sobrenome de família. A galeria passa então a se chamar Galeria Tina Zappoli.
[32] “Fui condenada ao núcleo histórico”. Entrevista concedida a Eduardo Veras. Zero Hora, Porto Alegre, 26 maio 2001, Caderno de Cultura, p. 3. Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.
[33] Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985 foi exibida em instituições como Hammer Museum, Los Angeles (2017), Brooklyn Museum, Nova York (2018), e Pinacoteca do Estado de São Paulo (2018). A mostra foi curada por Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta.