Há algo de precário e extraordinário na vida de um carrapato. Há um vazio de linguagem, de existência e de necessidades; é em sua pobreza de mundo em que se encontra sua potência de ser. Movido por três princípios básicos, o carrapato nasce e tem como primeira necessidade a busca pela luz. Escalando a árvore que lhe possibilita mais proximidade do calor solar, pode permanecer por até quinze anos, no mesmo lugar, sem se alimentar e aguardando que uma fonte de odor e calor acolhedor passe por baixo de si. Neste momento, a pequena criatura salta e ao mínimo ato falho, deve repetir a escalada e por lá permanecer até que outra fonte de vida lhe impulsione a saltar novamente. É nessa leveza de existência, nessa queda livre, nessa pulsão de entrega ao desejo, em que sua vida se torna potente. Viver na superfície do mundo, em seu estado de precariedade, exige um certo esvaziamento da linguagem, para que o habitar seja potência em sua pura e máxima instância. Os artistas desta mostra habitam entre uma coisa e outra, nunca diante de uma superfície, mas assim como os carrapatos, transitam em um limiar entre a superfície e uma outra coisa que a observa. É através dessa estranheza amorfa do olhar e deste acolhimento da urgência como lugar de (sobre)vivência, em que os trabalhos aqui reunidos nos convidam a experimentar - na possibilidade do entre, das brechas e das fugas pelos tecidos da política, da poesia, da filosofia e dos fenômenos sociais - a criação de um lugar de fricção entre o mundo do real, do trabalho, da violência, do medo e um mundo da poesia, onde tornar as significações da vida mais possíveis e inventadas trata-se de um impulso, de um movimento de manifestação do desejo e de diálogo com o outro. Ayla Tavares produz um estranhamento entre a superfície e a edificação da matéria como ponto de reflexão de imagens e formas amorfas da urbe, que recorrentemente atravessam o seu olhar e sua habitação entre os deslocamentos urbanos. Bianca Madruga ocupando a Vitrine Efêmera, produz uma ferida calorosa. Ao isolar o espaço da vitrine com madeirites vazados com a frase “A lucidez é a ferida mais próxima do sol”, invoca a presença do meio-dia; onde a luz nos exige uma entrega absoluta à razão solar e a sua incidência à cegueira de todos os dias. Fernanda Mafra investiga a epiderme como fenômeno social e ambiental; é a partir de sua morada nesta pelesuperfície em que apreende na camuflagem uma possibilidade de produção crítica diante do atual contexto político. João Paulo Racy produz um fantasma social a partir da sobreposição de texturas, e é nesta tentativa de fazer visível o que cotidianamente nos passa desapercebido, que se encontra a potência de seu olhar crítico e político voltado para questões do urbano e de suas massas populacionais. Jorge Menna Barreto nos invoca à ideia de corporeidade através da produção de um carimbo que reúne a soma do peso de todos os artistas da exposição. A ideia de massa e de presença nos impulsiona para uma perspectiva relacional, onde uma multidão se faz presente em um único corpo, onde o paradigma de que uma massa não pode ocupar o mesmo espaço que outra, se dissolve em sua poética. Matheus Simões produz um delírio promovido pela potência do vazio ou do abandono. A imagem inquietante de uma cama vazia nos traz o indício de uma presença, de um fantasma e de uma espera no olhar, como na história do herói Ulisses, que fez da passagem o seu lar, aludindo aqui, ao retorno do impossível. Nathan Braga também utiliza como potência o eixo ausência-presença; na ausência de imagem em seus porta-retratos, a presença sucumbe ao odor, produzindo uma memória afetiva que lidará com a imprevisibilidade do tempo e do habitar na vida, produzindo a destruição dupla da imagem e da matéria. Veronica Peixoto encontra no movimento dos cavalos um lugar imaterial e de inquietação para sua poética. Os cavalos de pelos negros tem por especificidade a não aderência da luz; embora exista a passagem e acolhimento da luz na imagem, produzindo um ser incógnito, que como um vulto se inscreve na superfície, com uma beleza misteriosa. Nesta exposição, os artistas nos convidam para compartilhar de um momento de flutuação e queda, onde suas poéticas tornam-se cada vez mais densas que o ar, nesta superfície de urgência de vida e de poesia. Como no salto de um carrapato, a potência de seus discursos já não pesa mais que o ar, dada a leveza de sua existência, na busca de um olhar para habitar. Todo impulso, aqui, trata-se de um desejo voraz por um ato de resistência. Yago Toscano |