MAGLIANI GRÁFICA: recorte de uma obra singular
O físico inglês Isaac Newton publicou em 1687 a Lei da Ação e Reação, que dizia “A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”. No Brasil de hoje, podemos dizer que vivemos a reação dos espíritos mais progressistas contra a barbárie estrutural no qual nosso país foi formado. Vemos o surgimento de mecanismos de inclusão social, como o programa de cotas que permitiu que populações negras e periféricas entrassem nas universidades brasileiras e o contínuo empoderamento de pessoas que não se enquadravam no estereótipo dominante (homem, branco, heterossexual). É estimulante perceber que há um movimento contrário e com força suficiente para contrapor essa triste herança e a marcar uma mudança nas estruturas empoeiradas de um Brasil misógino, racista e homofóbico. Maria Lídia Magliani (1946/2012) não viveu o suficiente para acompanhar esse processo que se desenvolveu, sobretudo na última década. Quais seriam seus questionamentos hoje, sendo uma mulher negra e uma artista de grande potencial intelectual? Seria amplamente reconhecida e respeitada como tal? Qual obra estaria a fazer?
Magliani, como assim passou a ser chamada, tinha uma capacidade rara de atuar em muitas áreas para além da pintura – sua atividade mais consolidada – pois trabalhou também como atriz, cenógrafa, figurinista, além de sua produção de ilustradora e diagramadora em diversas redações de jornal. A exposição MAGLIANI Gráfica se propõe a percorrer o longo fio, citado por Denise Matar, curadora com Gustavo Possamai da grande retrospectiva de sua obra realizada em 2022 pela Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre: “Certos de que a exposição surpreenderá o público e a crítica, Gustavo e eu temos, entretanto, a consciência de que essa mostra é apenas o princípio – a ponta de um longo fio que merece ser puxado”. Em uma entrevista a artista disse que começou a pintar aos 9 anos de idade e que antes disso já desenhava e que não imaginava sua vida sem o desenho. De fato é possível perceber em sua longa trajetória que Magliani faria valer sua marca indelével em extensa obra produzida pelos diversos lugares que passou. Nasce em Pelotas, mas sua formação se dá em Porto Alegre onde a família se transfere quando era criança e passa a estudar pintura na escola de arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde é aluna do professor Ado Malagoli, seu grande incentivador. Ao longo da vida morou em São Paulo, Tiradentes e Rio de Janeiro.
A mostra no Museu de Arte Murilo Mendes reúne o que podemos considerar a ponta final de seu trabalho, exceção feita apenas às sete gravuras do início dos anos 1980, entre elas, um conjunto de linoleogravuras produzidas para ilustrar o livro “O Círculo do Suicida” do escritor Eduardo San Martin. Nessa exposição esses trabalhos servem de elo para apontar a forte ligação que a artista teve ao longo de sua carreira com os recursos gráficos em sua linguagem, que podemos perceber não só nas gravuras mas também no seu desenho e na sua experiência como ilustradora nas diversas redações onde trabalhou. Em sua obra é visível a relação com a prática do traço rápido utilizado na rotina jornalística e sua produção resultou bastante extensa, se pensarmos que a artista começou a trabalhar muito cedo e, apesar dos altos e baixos do mercado de arte, sempre se relacionou com galerias e viveu de seu trabalho.
Magliani trabalhava por séries e muitas vezes simultaneamente. No único exemplar representando a série “Alfabeto”, vemos que o sutiã reforça a crítica ao que cerceia a liberdade feminina. As séries “Todos” e “Um de Todos” mantém certa afinidade, sendo que os rostos individualizados da primeira transformam-se em máscaras na segunda, lembrando-nos de que “persona” em latim significa máscara de ator, em uma referência clara ao passado da artista nos palcos. “Os Outros” e “Retratos de Ninguém” dialogam diretamente entre si e podem ser incluídas na análise aprofundada e visionária com que Magliani observava a sociedade. Alguns rostos anônimos e outros nem tanto, diferentes na forma, mas de certa maneira uniformizados como em um exército de soldados perdidos e sem expressão definida. No conjunto das “Cartas”, iniciada em 2009, há na pintura uma presença acentuada da cor e da influência da xilogravura, como se estivessem presentes, nas pinceladas curtas, o corte da madeira. Já nas xilogravuras propriamente ditas percebemos uma certa fragmentação do espaço, com aspecto de colagem. “Procura-se” foi a última série, onde a palheta se reduz ao preto e branco (com raros momentos de alguma outra cor). “Manhã”; “Flora Repousa”; “Édipo no Jardim”, são obras desse período. Exibida em 2012 no Estudio Dezenove, como exposição individual, essa série desdobrou-se em pinturas, gravuras e em um álbum com oito xilogravuras em cujo folder Rubens Pileggi Sá escreve: “São pinturas e gravuras em preto e branco. Mas podem ser vistos, também, como seres deslocados, fora de seu lugar, que se juntam a coisas perdidas no meio do caminho. Bules/rostos; pano torcido/cara; objeto/pessoa. A gente vai se enchendo de coisas e as coisas estão cheias da gente. Ou, estão cheias de gente. Não é uma questão de similitude de forma. São agrupamentos quase surrealistas entre materialidades distintas. Ou colagens absurdas que só se conformam pra nos dizer sobre a inconformidade.”
Nas duas últimas décadas de vida seu atelier foi no Estudio Dezenove, espaço que funcionava nesse período como um coletivo de artistas e um lugar de referência para o bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, pois era a base da equipe de produção do evento Arte de Portas Abertas, um circuito de ateliês abertos ao público que até hoje movimenta a cidade e cuja sustentação jurídica foi dada desde 2003 pela Associação de Artistas Chave Mestra, tendo Magliani como uma das suas fundadoras, já que sempre foi adepta da união entre os artistas em prol de uma consciência de classe. Após seu falecimento em 2012 os herdeiros da artista autorizaram o Estudio Dezenove a manter e organizar sua obra e a realizar impressões póstumas, que são produzidas com o mesmo rigor técnico planejado pela artista. Algumas das gravuras exibidas nessa exposição só foram possíveis graças a esse acordo, estando devidamente sinalizadas. No local criamos o Núcleo Magliani, um centro de difusão e preservação da sua obra, que passou a mapear coleções, disponibilizar material para pesquisa e atuar como facilitador nas autorizações do uso de imagem, fator importante para a efetiva circulação da obra.
A exposição aponta a força e a diversidade da obra gráfica da artista, que assim como sua pintura, carrega uma forte carga expressionista. Um olhar atento encontra nela elementos psicanalíticos que a aproxima do irlandês Francis Bacon, do alemão depois naturalizado britânico Lucien Freud, este sobrinho de Sigmund Freud, e do belga René Magritte. Leitora voraz (era grande admiradora de Dostoiévski), Magliani era um ser mental por excelência e os personagens que povoam sua produção refletem isso. O Museu Murilo Mendes exibe de maneira inédita esse recorte de uma obra fecunda de uma artista que lutou para manter-se fiel a si mesma, um ser sem fronteiras, que encontrou durante alguns anos um acolhimento fraternal em Minas Gerais, como agora sua obra é recebida.
Julio Castro e Sergio Viveiros
Rio de Janeiro, maio de 2023
O físico inglês Isaac Newton publicou em 1687 a Lei da Ação e Reação, que dizia “A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”. No Brasil de hoje, podemos dizer que vivemos a reação dos espíritos mais progressistas contra a barbárie estrutural no qual nosso país foi formado. Vemos o surgimento de mecanismos de inclusão social, como o programa de cotas que permitiu que populações negras e periféricas entrassem nas universidades brasileiras e o contínuo empoderamento de pessoas que não se enquadravam no estereótipo dominante (homem, branco, heterossexual). É estimulante perceber que há um movimento contrário e com força suficiente para contrapor essa triste herança e a marcar uma mudança nas estruturas empoeiradas de um Brasil misógino, racista e homofóbico. Maria Lídia Magliani (1946/2012) não viveu o suficiente para acompanhar esse processo que se desenvolveu, sobretudo na última década. Quais seriam seus questionamentos hoje, sendo uma mulher negra e uma artista de grande potencial intelectual? Seria amplamente reconhecida e respeitada como tal? Qual obra estaria a fazer?
Magliani, como assim passou a ser chamada, tinha uma capacidade rara de atuar em muitas áreas para além da pintura – sua atividade mais consolidada – pois trabalhou também como atriz, cenógrafa, figurinista, além de sua produção de ilustradora e diagramadora em diversas redações de jornal. A exposição MAGLIANI Gráfica se propõe a percorrer o longo fio, citado por Denise Matar, curadora com Gustavo Possamai da grande retrospectiva de sua obra realizada em 2022 pela Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre: “Certos de que a exposição surpreenderá o público e a crítica, Gustavo e eu temos, entretanto, a consciência de que essa mostra é apenas o princípio – a ponta de um longo fio que merece ser puxado”. Em uma entrevista a artista disse que começou a pintar aos 9 anos de idade e que antes disso já desenhava e que não imaginava sua vida sem o desenho. De fato é possível perceber em sua longa trajetória que Magliani faria valer sua marca indelével em extensa obra produzida pelos diversos lugares que passou. Nasce em Pelotas, mas sua formação se dá em Porto Alegre onde a família se transfere quando era criança e passa a estudar pintura na escola de arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde é aluna do professor Ado Malagoli, seu grande incentivador. Ao longo da vida morou em São Paulo, Tiradentes e Rio de Janeiro.
A mostra no Museu de Arte Murilo Mendes reúne o que podemos considerar a ponta final de seu trabalho, exceção feita apenas às sete gravuras do início dos anos 1980, entre elas, um conjunto de linoleogravuras produzidas para ilustrar o livro “O Círculo do Suicida” do escritor Eduardo San Martin. Nessa exposição esses trabalhos servem de elo para apontar a forte ligação que a artista teve ao longo de sua carreira com os recursos gráficos em sua linguagem, que podemos perceber não só nas gravuras mas também no seu desenho e na sua experiência como ilustradora nas diversas redações onde trabalhou. Em sua obra é visível a relação com a prática do traço rápido utilizado na rotina jornalística e sua produção resultou bastante extensa, se pensarmos que a artista começou a trabalhar muito cedo e, apesar dos altos e baixos do mercado de arte, sempre se relacionou com galerias e viveu de seu trabalho.
Magliani trabalhava por séries e muitas vezes simultaneamente. No único exemplar representando a série “Alfabeto”, vemos que o sutiã reforça a crítica ao que cerceia a liberdade feminina. As séries “Todos” e “Um de Todos” mantém certa afinidade, sendo que os rostos individualizados da primeira transformam-se em máscaras na segunda, lembrando-nos de que “persona” em latim significa máscara de ator, em uma referência clara ao passado da artista nos palcos. “Os Outros” e “Retratos de Ninguém” dialogam diretamente entre si e podem ser incluídas na análise aprofundada e visionária com que Magliani observava a sociedade. Alguns rostos anônimos e outros nem tanto, diferentes na forma, mas de certa maneira uniformizados como em um exército de soldados perdidos e sem expressão definida. No conjunto das “Cartas”, iniciada em 2009, há na pintura uma presença acentuada da cor e da influência da xilogravura, como se estivessem presentes, nas pinceladas curtas, o corte da madeira. Já nas xilogravuras propriamente ditas percebemos uma certa fragmentação do espaço, com aspecto de colagem. “Procura-se” foi a última série, onde a palheta se reduz ao preto e branco (com raros momentos de alguma outra cor). “Manhã”; “Flora Repousa”; “Édipo no Jardim”, são obras desse período. Exibida em 2012 no Estudio Dezenove, como exposição individual, essa série desdobrou-se em pinturas, gravuras e em um álbum com oito xilogravuras em cujo folder Rubens Pileggi Sá escreve: “São pinturas e gravuras em preto e branco. Mas podem ser vistos, também, como seres deslocados, fora de seu lugar, que se juntam a coisas perdidas no meio do caminho. Bules/rostos; pano torcido/cara; objeto/pessoa. A gente vai se enchendo de coisas e as coisas estão cheias da gente. Ou, estão cheias de gente. Não é uma questão de similitude de forma. São agrupamentos quase surrealistas entre materialidades distintas. Ou colagens absurdas que só se conformam pra nos dizer sobre a inconformidade.”
Nas duas últimas décadas de vida seu atelier foi no Estudio Dezenove, espaço que funcionava nesse período como um coletivo de artistas e um lugar de referência para o bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, pois era a base da equipe de produção do evento Arte de Portas Abertas, um circuito de ateliês abertos ao público que até hoje movimenta a cidade e cuja sustentação jurídica foi dada desde 2003 pela Associação de Artistas Chave Mestra, tendo Magliani como uma das suas fundadoras, já que sempre foi adepta da união entre os artistas em prol de uma consciência de classe. Após seu falecimento em 2012 os herdeiros da artista autorizaram o Estudio Dezenove a manter e organizar sua obra e a realizar impressões póstumas, que são produzidas com o mesmo rigor técnico planejado pela artista. Algumas das gravuras exibidas nessa exposição só foram possíveis graças a esse acordo, estando devidamente sinalizadas. No local criamos o Núcleo Magliani, um centro de difusão e preservação da sua obra, que passou a mapear coleções, disponibilizar material para pesquisa e atuar como facilitador nas autorizações do uso de imagem, fator importante para a efetiva circulação da obra.
A exposição aponta a força e a diversidade da obra gráfica da artista, que assim como sua pintura, carrega uma forte carga expressionista. Um olhar atento encontra nela elementos psicanalíticos que a aproxima do irlandês Francis Bacon, do alemão depois naturalizado britânico Lucien Freud, este sobrinho de Sigmund Freud, e do belga René Magritte. Leitora voraz (era grande admiradora de Dostoiévski), Magliani era um ser mental por excelência e os personagens que povoam sua produção refletem isso. O Museu Murilo Mendes exibe de maneira inédita esse recorte de uma obra fecunda de uma artista que lutou para manter-se fiel a si mesma, um ser sem fronteiras, que encontrou durante alguns anos um acolhimento fraternal em Minas Gerais, como agora sua obra é recebida.
Julio Castro e Sergio Viveiros
Rio de Janeiro, maio de 2023