O eu, o outro, todos e ninguém no meio da multidão
Em uma época em que a afirmação de um “lugar de fala” é tão valorizada e amplificada nas inúmeras narrativas identitárias e autocentradas, esse Retratos de Ninguém, de Julio Castro, exposto na Vitrine Efêmera do Estudio DEZENOVE – e que se desdobra em uma série enorme de gravuras que leva o mesmo título – parece apontar para um lado diametralmente oposto desse “outro cultural” que fala de si mesmo.
Em primeiro lugar, porque já no título do trabalho apresentado ele se apropria de um título da obra de Magliani, inserindo um “aprés” para informar a fonte de sua inspiração, que é a artista a quem Julio se dedica a conservar e difundir a obra, lembrando que Magliani foi parceira, amiga e trabalhou no DEZENOVE durante anos. Ou seja, ao homenagear os 25 anos de ação ininterrupta (!) da Vitrine, oferecendo ao público passante da Rua do Oriente, em Santa Teresa, Rio de Janeiro, um leque de artistas de várias gerações e linguagens que ali expuseram suas obras, coloca também em cena a artista gaúcha, falecida em 2012.
Sobre a obra, trata-se de um conjunto de máscaras que Julio usou para criar uma série de trabalhos em stencil durante o período de isolamento social, em decorrência da pandemia produzida pelo vírus da Covid-19. O que é relevante nisso, é que, enquanto estávamos isolados, Julio trabalhava com centenas de retratos de pessoas que são de “ninguém”, mas que povoavam seu ateliê e sua imaginação.
Cada um desses retratos joga com elementos do cheio e do vazio, do positivo e do negativo, da cor e da linha, resultando em imagens que se apresentam em camadas, empilhadas umas sobre as outras, muitas vezes perdendo, ou fazendo com que a característica de uma máscara esteja fundida a outras, criando uma multidão de pessoas sem lugar, como talvez todos nós tivéssemos nos sentindo, naquele momento, mas que, nesse artista gaúcho-carioca resultou em uma procura por si mesmo nessa multiplicação de figuras.
Como refinado e paciente gravador que é, Julio trabalha insistentemente repetindo a ação da impressão, mas tornando cada imagem única, e as máscaras – que serviram de molde e modelo – ao serem expostas na vitrine, já não são mais ninguém, apenas tornam-se resíduos, rastros cansados e exauridos que, em um último esforço de se aparentarem e se apresentarem em sua pretensa individualidade, são convocadas a serem o que são: manchas de cor, formas que projetam sombras, aparições precárias e fantasmas de recortes de papel. Mas, também, não deixam de ser ele e ela, eu e você.
Entre o mesmo e o outro – como não lembrar os vários heterônimos do poeta Fernando Pessoa? – é no aqui e agora que nos tornamos todos e ninguém. Somos o povo, somos do povo e não somos, ainda. Porque, na formação da identidade nacional, a diversidade aponta para um fora em muitos de nós – ou, pelo menos, em partes de nós mesmos – que somos de um lugar outro, apesar de estarmos equilibrados em um mesmo onde.
Para Julio, no entanto, esse “onde” e esse “quem” é sempre um lugar a ser inventado. Ao se utilizar da técnica da gravura – que dá a ilusão de massa através da cor – vai criando sua própria utopia como artista, buscando incorporar na dureza, aspereza e definição do desenho aprendido nos pampas, a sinuosidade e a sensualidade do modo de ser dos cariocas, que poderia se comparar com a massa pictórica, pensando pelas características materiais da tinta: viscosa, escorregadia e colorida. Retratos de ninguém, portanto, funciona como um documento de época, um registro em que o artista, no ato do forçoso isolamento, agiu como um alquimista que deu vida a uma multidão que vivia dentro de si, transmudando o que era material bruto em pedra preciosa de valor único.
Rubens Pileggi
agosto de 2023
Em uma época em que a afirmação de um “lugar de fala” é tão valorizada e amplificada nas inúmeras narrativas identitárias e autocentradas, esse Retratos de Ninguém, de Julio Castro, exposto na Vitrine Efêmera do Estudio DEZENOVE – e que se desdobra em uma série enorme de gravuras que leva o mesmo título – parece apontar para um lado diametralmente oposto desse “outro cultural” que fala de si mesmo.
Em primeiro lugar, porque já no título do trabalho apresentado ele se apropria de um título da obra de Magliani, inserindo um “aprés” para informar a fonte de sua inspiração, que é a artista a quem Julio se dedica a conservar e difundir a obra, lembrando que Magliani foi parceira, amiga e trabalhou no DEZENOVE durante anos. Ou seja, ao homenagear os 25 anos de ação ininterrupta (!) da Vitrine, oferecendo ao público passante da Rua do Oriente, em Santa Teresa, Rio de Janeiro, um leque de artistas de várias gerações e linguagens que ali expuseram suas obras, coloca também em cena a artista gaúcha, falecida em 2012.
Sobre a obra, trata-se de um conjunto de máscaras que Julio usou para criar uma série de trabalhos em stencil durante o período de isolamento social, em decorrência da pandemia produzida pelo vírus da Covid-19. O que é relevante nisso, é que, enquanto estávamos isolados, Julio trabalhava com centenas de retratos de pessoas que são de “ninguém”, mas que povoavam seu ateliê e sua imaginação.
Cada um desses retratos joga com elementos do cheio e do vazio, do positivo e do negativo, da cor e da linha, resultando em imagens que se apresentam em camadas, empilhadas umas sobre as outras, muitas vezes perdendo, ou fazendo com que a característica de uma máscara esteja fundida a outras, criando uma multidão de pessoas sem lugar, como talvez todos nós tivéssemos nos sentindo, naquele momento, mas que, nesse artista gaúcho-carioca resultou em uma procura por si mesmo nessa multiplicação de figuras.
Como refinado e paciente gravador que é, Julio trabalha insistentemente repetindo a ação da impressão, mas tornando cada imagem única, e as máscaras – que serviram de molde e modelo – ao serem expostas na vitrine, já não são mais ninguém, apenas tornam-se resíduos, rastros cansados e exauridos que, em um último esforço de se aparentarem e se apresentarem em sua pretensa individualidade, são convocadas a serem o que são: manchas de cor, formas que projetam sombras, aparições precárias e fantasmas de recortes de papel. Mas, também, não deixam de ser ele e ela, eu e você.
Entre o mesmo e o outro – como não lembrar os vários heterônimos do poeta Fernando Pessoa? – é no aqui e agora que nos tornamos todos e ninguém. Somos o povo, somos do povo e não somos, ainda. Porque, na formação da identidade nacional, a diversidade aponta para um fora em muitos de nós – ou, pelo menos, em partes de nós mesmos – que somos de um lugar outro, apesar de estarmos equilibrados em um mesmo onde.
Para Julio, no entanto, esse “onde” e esse “quem” é sempre um lugar a ser inventado. Ao se utilizar da técnica da gravura – que dá a ilusão de massa através da cor – vai criando sua própria utopia como artista, buscando incorporar na dureza, aspereza e definição do desenho aprendido nos pampas, a sinuosidade e a sensualidade do modo de ser dos cariocas, que poderia se comparar com a massa pictórica, pensando pelas características materiais da tinta: viscosa, escorregadia e colorida. Retratos de ninguém, portanto, funciona como um documento de época, um registro em que o artista, no ato do forçoso isolamento, agiu como um alquimista que deu vida a uma multidão que vivia dentro de si, transmudando o que era material bruto em pedra preciosa de valor único.
Rubens Pileggi
agosto de 2023
VITRINE EFÊMERA Julio Castro - Retratos de Ninguém 26/8 a 24/9/2023 Texto Rubens Pileggi Julio Castro é formado em gravura pela UFRJ com passagem pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage e Instituto de Artes da UFRGS em Porto Alegre, dedica-se à produção artística a partir dos anos noventa. Participou das mostras coletivas A Paixão do Olhar MAM/RJ; Republicar Museu da República-RJ (1993); da XV ESTAMPA – Salão Internacional de Gravura e Edições de Arte Contemporânea em Madrid (2007); Plaisir d’Offrir#2 – Galeria Dagmar De Pooter / Antuérpia, Bélgica (2009); Rio X Córdoba, Museu Emílio Caraffa, Argentina, entre outras. Individualmente expôs no Rio de Janeiro, Pelotas, Porto Alegre, em Lisboa no Centro Português de Serigrafia (2007) e em Bruxelas no ARS117 (2009), espaços em que fez residência como artista convidado. Em 2019 realiza residência no Ohtawara Cultural Center no Japão onde produz uma série de xilogravuras. Coordena o Estudio Dezenove, espaço dedicado à arte contemporânea localizado em Santa Teresa no Rio de Janeiro e desde 2011 é professor na área de Imagem Gráfica na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A partir de 2013 coordena o Núcleo Magliani, centro de referência da obra da artista. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. |