As mulheres gordas de Magliani: um espasmo corporal
Entrevista com a repórter Liane dos Santos, 10 de junho de 1977
Galeria Independência. Maio de 1979. Exposição de Magliani. Uma senhora, depois de olhar atentamente os trabalhos expostos, se aproxima da artista, sem reconhecê-la no entanto, e lhe pergunta: "Você trabalha aqui?" Magliani diz que não. A senhora insiste: "És estudante de arte?" Magliani diz que estudou arte em 1967, já está formada. A senhora então, depois de certificar que ninguém está prestando atenção àquela conversa, chega-se mais perto de Magliani, e girando o dedo indicador pela sala onde estão expostos as pinturas e os desenhos de Magliani, pergunta em tom de cumplicidade: "Sabes me explicar isso?" E a artista responde com calma, sorrindo: "Não senhora, eu só sei fazer".
Tolice tentar definir a arte de Maria Lídia Magliani, gaúcha de Pelotas que há 33 anos anda por aqui saindo somente uma vez por ano para ir a São Paulo.
Já recebeu alguns prêmios e para ela isso absolutamente não é o mais importante, tanto que nem se fixa no assunto e passa logo a falar de outras coisas.
Dona de um estilo agressivo e que em sua atual fase retrata mulheres com seus corpos aviltados por ferros e garfos, explorando de modo quase cruel as coxas e os ventres de suas modelos. Magliani pode se orgulhar, no entanto, de uma coisa: apesar de ter muitas críticas ao seu trabalho, ela é definitivamente uma artista respeitada e como tal precisa por vezes de uma boa dose de paciência e bondade para receber das pessoas as perguntas mais diversas e até certo ponto infantis sobre o seu trabalho.
Sua figura miúda por certo decepciona um pouco as pessoas que não a conhecem senão através de seus trabalhos que, de tão fortes, quase sempre dão a impressão de terem sido feitos por um homem.
Mas ela parece suficientemente estruturada para não se preocupar mais com as manifestações de pessoas que teimam em querer classificar o seu trabalho, analisar os seus motivos e tudo mais. Magliani só consegue rir ao ouvir de um jovem que seu motivo de mulheres revela um "complexo de Édipo ao contrário", ou então que ela tenha "fixação por mulheres".
Não se trata disso, evidentemente. O que Magliani tem é uma profunda coerência com sua vida e sua arte, ambas um reflexo de seu posicionamento político e social. "Meu posicionamento político é acima da política", diz Magliani quando lhe perguntam sobre a atual situação das coisas. E Acrescenta: "Me preocupo muito mais com as pessoas, com o que elas sentem, não o que elas pensam".
De fato: a própria artista procura sempre fazer mais pintura do que literatura e mesmo suas tentativas de escrever são, confessadamente, tentativas para "compreender mais ainda, não para serem lidas".
Não se trata, é claro de um ser de outro planeta, mas não se pode deixar de dizer que Magliani impressiona por seus gostos e seus modos de viver. Tem poucos discos na sua casa e perguntada sobre mitos e ídolos, ela se retrai - é literalmente desligada desse tipo de coisas. "É preciso criar e não em cima do trabalho dos outros".
É assim que Magliani vai fazendo "Brinquedos de Armar", atualmente na Galeria Independência, é a oitava exposição individual dessa artista que prefere trabalhar à noite por que sabe que ninguém vai interrompê-la e nem ela terá compromisso algum e poderá ficar pintando até "as sete horas da manhã". Mas apesar de tudo o que já fez, Magliani não se considera satisfeita. "Quando eu estiver satisfeita, pode mandar rezar a missa de sétimo dia" afirma, sorrindo.
Embora não se considere uma feminista - aliás, ela procura não se classificar em nenhum movimento "ista" - Magliani tem inegavelmente uma preocupação muito forte em relação às mulheres. Mesmo admitindo que seu trabalho não vai conseguir mudar situação alguma, ela acha importante tudo isso, e apesar de sua preocupação não girar unicamente em torno das mulheres - "os homens são tão amassados quanto elas" - Magliani reconhece que é na mulher que essa preocupação se manifesta mais.
"Minha cabeça não tem cor"
Magliani rabisca um caderninho enquanto fala e surge aos poucos um rosto de homem, também desfigurado como suas mulheres. Ela sorri enquanto larga o caderninho e acende mais um dos seus constantes cigarros. Magliani bebe muito e confessa que jamais consegue criar alguma coisa depois de ter bebido.
A conversa mudou um pouco, estamos mais sérias e eu pergunto como ela se sente por ser uma mulher de cor, qual a dificuldade ou facilidade que encontrou e encontra por ser negra. A minha pergunta a colhe de surpresa. Ela não chega a pensar na sua cor. Eu então peço perdão intimamente por tê-la incomodado com tamanha falta de sensibilidade. Cor é o que menos importa, principalmente quando a pessoa - de qualquer raça - consegue escapar desse limitado mundo das convenções que nossos antigos, já massacrados pelas mesmas regras, tentaram nos convencer como certas.
Para ela é tão natural ser negra como seria natural se fosse branca. Ela admite ter ouvido uma série de censuras quanto à sua cor em termos de mostras da sua capacidade, mas lembra que no Brasil - "somos produto de uma miscigenação" - e conclui quase que se desculpando por encerrar o assunto de um modo tão definitivo: "Minha cabeça não tem cor".
Na sua casa não tem televisão, "mesmo por que é coisa muito cômoda e se eu fico diante da televisão eu não produzo". Trabalhando na Folha da Manhã há cinco anos, Magliani, que demonstra enorme admiração por Leonardo da Vinci - a ponto de ter dado o primeiro nome de artista a um sobrinho, em sua homenagem - por vezes se mostra um pouco cansada com tudo que a cerca.
Apesar de conhecida e respeitada, Magliani se queixa um pouco da solidão. Mas não daquela solidão que possamos imaginar que alguém sinta sozinha. Ela se refere à solidão que aparece mesmo quando se está no meio de uma porção de gente. "Essa é a solidão". afirma Magliani. "Porque pareceu que de repente só temos amigos para ocasiões: "Temos o amigo para passear, o amigo para jantar, o amigo para ir à boate, o amigo com quem se pode alar algumas coisas e há sempre aquele medo muito grande por parte das pessoas em admitir um relacionamento mais profundo. Então temos que ficar sempre enfeitando nossas ideias de acordo com as pessoas com quem falamos e isso me cansa muito".
Pergunto sobre música. Ela fala em Mozart, Bach, Vivaldi. Festas: deixou de ir porque percebeu que a coisa estava se tornando um ritual, onde não acontecia nada de novo. Assim ela preferia ficar em casa lendo num sábado à noite do que sair simplesmente porque as pessoas estão fazendo isso.
CORAGEM
Renato Rosa, o dono da Galeria, se aproxima, senta conosco e toma um chá. Pergunto como teve a coragem de expor Magliani. Ele me olha. Penso que não estou sendo muito feliz nas minhas perguntas, mas aguento firme pela resposta. Renato, surpreendentemente, então confirma que “é preciso ter peito” para expor magliani, considerada uma artista “maldita”, mas por outro lado, completa, “uma galeria que chega a expor Magliani significa uma espécie de afirmação da casa”.
Depois Renato fala sobre os preços dos quadros, do mundo das artes plásticas e tudo naquela mesma atmosfera já criada por Magliani. Juntos está também Péricles Gomide e os três conversam entre si uma linguagem que não vemos na rua, nem nos escritórios. Começo a me questionar profundamente então, como que as pessoas ainda podem se fixar em coisas tão desprezíveis, como por exemplo, a cor de uma pele, avaliar a capacidade de alguém.
Magliani está mais solta, as pessoas continuam visitando a Galeria olhando em silêncio para as suas mulheres gordas. Como mulher, não ficaria melhor se Magliani pintasse flores, naturezas mortas, crianças?
Não. Decididamente, não. É preciso que ela explore ao máximo seus motivos de agressão como uma forma de lutar contra essa mesma agressão. E afinal de contas, no mundo das artes – sejam quais forem suas formas – os artistas já vivem noutro plano, onde o fato de ser homem ou mulher chega a ser um papel secundário e se torna necessidade primária o ato de criar.
Magliani não seria Magliani pintando flores, naturezas mortas ou crianças. Se fizesse isso por que uma mulher tem que ter esses motivos, ela não seria a artista que é. Ela seria aquilo que o poeta Mario Quintana disse acerca de mulheres que temem romper com seus motivos e justamente por serem mulheres acreditam que devem escrever sobre lágrimas, flores, barcos partindo...Ela seria “uma senhora formada na escola ginecológica de letras”. Ou de artes.
E todos nós perderíamos muito com isso.
Liane dos Santos
Entrevista com a repórter Liane dos Santos, 10 de junho de 1977
Galeria Independência. Maio de 1979. Exposição de Magliani. Uma senhora, depois de olhar atentamente os trabalhos expostos, se aproxima da artista, sem reconhecê-la no entanto, e lhe pergunta: "Você trabalha aqui?" Magliani diz que não. A senhora insiste: "És estudante de arte?" Magliani diz que estudou arte em 1967, já está formada. A senhora então, depois de certificar que ninguém está prestando atenção àquela conversa, chega-se mais perto de Magliani, e girando o dedo indicador pela sala onde estão expostos as pinturas e os desenhos de Magliani, pergunta em tom de cumplicidade: "Sabes me explicar isso?" E a artista responde com calma, sorrindo: "Não senhora, eu só sei fazer".
Tolice tentar definir a arte de Maria Lídia Magliani, gaúcha de Pelotas que há 33 anos anda por aqui saindo somente uma vez por ano para ir a São Paulo.
Já recebeu alguns prêmios e para ela isso absolutamente não é o mais importante, tanto que nem se fixa no assunto e passa logo a falar de outras coisas.
Dona de um estilo agressivo e que em sua atual fase retrata mulheres com seus corpos aviltados por ferros e garfos, explorando de modo quase cruel as coxas e os ventres de suas modelos. Magliani pode se orgulhar, no entanto, de uma coisa: apesar de ter muitas críticas ao seu trabalho, ela é definitivamente uma artista respeitada e como tal precisa por vezes de uma boa dose de paciência e bondade para receber das pessoas as perguntas mais diversas e até certo ponto infantis sobre o seu trabalho.
Sua figura miúda por certo decepciona um pouco as pessoas que não a conhecem senão através de seus trabalhos que, de tão fortes, quase sempre dão a impressão de terem sido feitos por um homem.
Mas ela parece suficientemente estruturada para não se preocupar mais com as manifestações de pessoas que teimam em querer classificar o seu trabalho, analisar os seus motivos e tudo mais. Magliani só consegue rir ao ouvir de um jovem que seu motivo de mulheres revela um "complexo de Édipo ao contrário", ou então que ela tenha "fixação por mulheres".
Não se trata disso, evidentemente. O que Magliani tem é uma profunda coerência com sua vida e sua arte, ambas um reflexo de seu posicionamento político e social. "Meu posicionamento político é acima da política", diz Magliani quando lhe perguntam sobre a atual situação das coisas. E Acrescenta: "Me preocupo muito mais com as pessoas, com o que elas sentem, não o que elas pensam".
De fato: a própria artista procura sempre fazer mais pintura do que literatura e mesmo suas tentativas de escrever são, confessadamente, tentativas para "compreender mais ainda, não para serem lidas".
Não se trata, é claro de um ser de outro planeta, mas não se pode deixar de dizer que Magliani impressiona por seus gostos e seus modos de viver. Tem poucos discos na sua casa e perguntada sobre mitos e ídolos, ela se retrai - é literalmente desligada desse tipo de coisas. "É preciso criar e não em cima do trabalho dos outros".
É assim que Magliani vai fazendo "Brinquedos de Armar", atualmente na Galeria Independência, é a oitava exposição individual dessa artista que prefere trabalhar à noite por que sabe que ninguém vai interrompê-la e nem ela terá compromisso algum e poderá ficar pintando até "as sete horas da manhã". Mas apesar de tudo o que já fez, Magliani não se considera satisfeita. "Quando eu estiver satisfeita, pode mandar rezar a missa de sétimo dia" afirma, sorrindo.
Embora não se considere uma feminista - aliás, ela procura não se classificar em nenhum movimento "ista" - Magliani tem inegavelmente uma preocupação muito forte em relação às mulheres. Mesmo admitindo que seu trabalho não vai conseguir mudar situação alguma, ela acha importante tudo isso, e apesar de sua preocupação não girar unicamente em torno das mulheres - "os homens são tão amassados quanto elas" - Magliani reconhece que é na mulher que essa preocupação se manifesta mais.
"Minha cabeça não tem cor"
Magliani rabisca um caderninho enquanto fala e surge aos poucos um rosto de homem, também desfigurado como suas mulheres. Ela sorri enquanto larga o caderninho e acende mais um dos seus constantes cigarros. Magliani bebe muito e confessa que jamais consegue criar alguma coisa depois de ter bebido.
A conversa mudou um pouco, estamos mais sérias e eu pergunto como ela se sente por ser uma mulher de cor, qual a dificuldade ou facilidade que encontrou e encontra por ser negra. A minha pergunta a colhe de surpresa. Ela não chega a pensar na sua cor. Eu então peço perdão intimamente por tê-la incomodado com tamanha falta de sensibilidade. Cor é o que menos importa, principalmente quando a pessoa - de qualquer raça - consegue escapar desse limitado mundo das convenções que nossos antigos, já massacrados pelas mesmas regras, tentaram nos convencer como certas.
Para ela é tão natural ser negra como seria natural se fosse branca. Ela admite ter ouvido uma série de censuras quanto à sua cor em termos de mostras da sua capacidade, mas lembra que no Brasil - "somos produto de uma miscigenação" - e conclui quase que se desculpando por encerrar o assunto de um modo tão definitivo: "Minha cabeça não tem cor".
Na sua casa não tem televisão, "mesmo por que é coisa muito cômoda e se eu fico diante da televisão eu não produzo". Trabalhando na Folha da Manhã há cinco anos, Magliani, que demonstra enorme admiração por Leonardo da Vinci - a ponto de ter dado o primeiro nome de artista a um sobrinho, em sua homenagem - por vezes se mostra um pouco cansada com tudo que a cerca.
Apesar de conhecida e respeitada, Magliani se queixa um pouco da solidão. Mas não daquela solidão que possamos imaginar que alguém sinta sozinha. Ela se refere à solidão que aparece mesmo quando se está no meio de uma porção de gente. "Essa é a solidão". afirma Magliani. "Porque pareceu que de repente só temos amigos para ocasiões: "Temos o amigo para passear, o amigo para jantar, o amigo para ir à boate, o amigo com quem se pode alar algumas coisas e há sempre aquele medo muito grande por parte das pessoas em admitir um relacionamento mais profundo. Então temos que ficar sempre enfeitando nossas ideias de acordo com as pessoas com quem falamos e isso me cansa muito".
Pergunto sobre música. Ela fala em Mozart, Bach, Vivaldi. Festas: deixou de ir porque percebeu que a coisa estava se tornando um ritual, onde não acontecia nada de novo. Assim ela preferia ficar em casa lendo num sábado à noite do que sair simplesmente porque as pessoas estão fazendo isso.
CORAGEM
Renato Rosa, o dono da Galeria, se aproxima, senta conosco e toma um chá. Pergunto como teve a coragem de expor Magliani. Ele me olha. Penso que não estou sendo muito feliz nas minhas perguntas, mas aguento firme pela resposta. Renato, surpreendentemente, então confirma que “é preciso ter peito” para expor magliani, considerada uma artista “maldita”, mas por outro lado, completa, “uma galeria que chega a expor Magliani significa uma espécie de afirmação da casa”.
Depois Renato fala sobre os preços dos quadros, do mundo das artes plásticas e tudo naquela mesma atmosfera já criada por Magliani. Juntos está também Péricles Gomide e os três conversam entre si uma linguagem que não vemos na rua, nem nos escritórios. Começo a me questionar profundamente então, como que as pessoas ainda podem se fixar em coisas tão desprezíveis, como por exemplo, a cor de uma pele, avaliar a capacidade de alguém.
Magliani está mais solta, as pessoas continuam visitando a Galeria olhando em silêncio para as suas mulheres gordas. Como mulher, não ficaria melhor se Magliani pintasse flores, naturezas mortas, crianças?
Não. Decididamente, não. É preciso que ela explore ao máximo seus motivos de agressão como uma forma de lutar contra essa mesma agressão. E afinal de contas, no mundo das artes – sejam quais forem suas formas – os artistas já vivem noutro plano, onde o fato de ser homem ou mulher chega a ser um papel secundário e se torna necessidade primária o ato de criar.
Magliani não seria Magliani pintando flores, naturezas mortas ou crianças. Se fizesse isso por que uma mulher tem que ter esses motivos, ela não seria a artista que é. Ela seria aquilo que o poeta Mario Quintana disse acerca de mulheres que temem romper com seus motivos e justamente por serem mulheres acreditam que devem escrever sobre lágrimas, flores, barcos partindo...Ela seria “uma senhora formada na escola ginecológica de letras”. Ou de artes.
E todos nós perderíamos muito com isso.
Liane dos Santos