Força e Coerência
O expressionismo, às vezes quase abstrato, de Iberê Camargo é uma exceção no panorama de pintura entre nós, gaúchos. Sempre fomos bastante acomodados face à onda de tentativas e "ismos" que vogaram pelo mundo nas últimas décadas. Talvez, mesmo nossa formação social ligada ao campo, à agricultura e à pecuária, e a nossa grande classe média, urbana e modesta, somente há pouco, ligada à indústria, setor mais dinâmico da economia, explique um certo gosto pelo clássico e pelo acadêmico. Assim é com grande prazer estético que se visita uma mostra como a de Maria Lídia Magliani na Galeria do Centro Comercial de Porto Alegre.
São dezenove desenhos sobre papel de grande formato em lápis de cor, nanquim e pastel, todos de excelente composição, onde o traço amadurecido da artista coloca sua visão do homem, num antilirismo com sofrimento e rigor. As figuras sempre presentes em seu trabalho, são distorcidas e perturbam. Perturbam, menos pelo fato de terem sido distorcidas do que pelo resultado final obtido que implica num distanciamento da beleza acadêmica. Na caricatura , a distorção acontece com um objetivo de tornar ridículo ou acentuar traços do personagem. Magliani não foge à denúncia que no século passado celebrizou Daumier, de quem se poderia dizer que é uma discípula pelos pontos de contato que tem. Ambos trabalharam na imprensa e na pintura.
A evolução notável da obra da artista tem seu ponto forte na coerência. Crítica mordaz e quase candente da situação da mulher e da sociedade de consumo, seu trabalho tem a força das verdades inteiras e seu expressionismo é filho direto do realismo. Afinal, a decadência e a hipocrisia não são belezas. O desenho, especialmente nos trabalhos com lápis de cor, tem traços tão violentos que parecem resultado de um processo de raiva, sem perder a intencionalidade que caracteriza certos poemas de Garcia Lorca.
Elemento novo, nesta exposição são os "embrulhos", onde a figura não aparece, apenas é adivinhada sob o invólucro. Evidencia claramente numa metáfora, a denúncia que, há tempos, a artista faz da desumanização, da transformação em objeto do homem do nosso tempo. Especialmente, nesses trabalhos, a utilização do branco do papel intensifica o efeito dramático do traço e a morbidez da cor. A composição é equilibrada, de uma desenhista que sabe ocupar o espaço.
Os "retratos falados" são igualmente uma busca do movimento e da voz. Alguns lembram mesmo a célebre litografia de Edward Munch, "O Grito", onde todos os traços parecem reforçar a voz muda dos personagens. (Retratos falados - São Paulo - julho 1981). Eles de certo modo revelam o impacto que a dura civilização de uma megalópole como São Paulo produziu na artista. Desde que deixou a ilustração da Folha da Manhã e Porto Alegre, Magliani não alterou sua postura, mas revela, talvez, uma feitura mais intelectualizada de seu trabalho, mas nem por isso menos terrível. "Retratos falados", títulos de vários trabalhos como a própria palavra escolhida diz, tem a ver com a identidade, tão difícil de se encontrar numa cidade grande.
Apesar de não conhecermos, lamentavelmente, nenhum exemplo de sua pintura recente, fica-nos a impressão de que seu trabalho deve ter ganho com o despojamento. No início, ao final dos anos 60, apesar de pesada, sua pintura ainda conservava um lirismo vagamente erótico. Alguns versos, às vezes, estavam escritos no fundo de seus quadros quase pretos. Mais adiante a pintura foi clareando, passou por uma fase de utilização da colagem com material de imprensa e um discreto conteúdo sócio-político para mais recentemente, chegar a uma fase de cores fortes e pintura mais limpa e despojada. A exposição de agora não chega a ser uma fase nova, apenas anunciada, que, mesmo assim mantém aquela coerência de princípios que a pintora sempre teve. Ela certamente tem algo a nos dizer e o faz de forma fluente. Numa época em que tantos caminhos da arte são descaminhos, ela continua a não conceder a comercialismos que poderiam tornar mais fácil sua caminhada, mas talvez mais difícil olhar-se ao espelho pela manhã. É a coerência e a força que tornam quase emocionante a visita a uma exposição de alta qualidade técnica como essa.
Luiz Inácio Medeiros, outubro de 1981
O expressionismo, às vezes quase abstrato, de Iberê Camargo é uma exceção no panorama de pintura entre nós, gaúchos. Sempre fomos bastante acomodados face à onda de tentativas e "ismos" que vogaram pelo mundo nas últimas décadas. Talvez, mesmo nossa formação social ligada ao campo, à agricultura e à pecuária, e a nossa grande classe média, urbana e modesta, somente há pouco, ligada à indústria, setor mais dinâmico da economia, explique um certo gosto pelo clássico e pelo acadêmico. Assim é com grande prazer estético que se visita uma mostra como a de Maria Lídia Magliani na Galeria do Centro Comercial de Porto Alegre.
São dezenove desenhos sobre papel de grande formato em lápis de cor, nanquim e pastel, todos de excelente composição, onde o traço amadurecido da artista coloca sua visão do homem, num antilirismo com sofrimento e rigor. As figuras sempre presentes em seu trabalho, são distorcidas e perturbam. Perturbam, menos pelo fato de terem sido distorcidas do que pelo resultado final obtido que implica num distanciamento da beleza acadêmica. Na caricatura , a distorção acontece com um objetivo de tornar ridículo ou acentuar traços do personagem. Magliani não foge à denúncia que no século passado celebrizou Daumier, de quem se poderia dizer que é uma discípula pelos pontos de contato que tem. Ambos trabalharam na imprensa e na pintura.
A evolução notável da obra da artista tem seu ponto forte na coerência. Crítica mordaz e quase candente da situação da mulher e da sociedade de consumo, seu trabalho tem a força das verdades inteiras e seu expressionismo é filho direto do realismo. Afinal, a decadência e a hipocrisia não são belezas. O desenho, especialmente nos trabalhos com lápis de cor, tem traços tão violentos que parecem resultado de um processo de raiva, sem perder a intencionalidade que caracteriza certos poemas de Garcia Lorca.
Elemento novo, nesta exposição são os "embrulhos", onde a figura não aparece, apenas é adivinhada sob o invólucro. Evidencia claramente numa metáfora, a denúncia que, há tempos, a artista faz da desumanização, da transformação em objeto do homem do nosso tempo. Especialmente, nesses trabalhos, a utilização do branco do papel intensifica o efeito dramático do traço e a morbidez da cor. A composição é equilibrada, de uma desenhista que sabe ocupar o espaço.
Os "retratos falados" são igualmente uma busca do movimento e da voz. Alguns lembram mesmo a célebre litografia de Edward Munch, "O Grito", onde todos os traços parecem reforçar a voz muda dos personagens. (Retratos falados - São Paulo - julho 1981). Eles de certo modo revelam o impacto que a dura civilização de uma megalópole como São Paulo produziu na artista. Desde que deixou a ilustração da Folha da Manhã e Porto Alegre, Magliani não alterou sua postura, mas revela, talvez, uma feitura mais intelectualizada de seu trabalho, mas nem por isso menos terrível. "Retratos falados", títulos de vários trabalhos como a própria palavra escolhida diz, tem a ver com a identidade, tão difícil de se encontrar numa cidade grande.
Apesar de não conhecermos, lamentavelmente, nenhum exemplo de sua pintura recente, fica-nos a impressão de que seu trabalho deve ter ganho com o despojamento. No início, ao final dos anos 60, apesar de pesada, sua pintura ainda conservava um lirismo vagamente erótico. Alguns versos, às vezes, estavam escritos no fundo de seus quadros quase pretos. Mais adiante a pintura foi clareando, passou por uma fase de utilização da colagem com material de imprensa e um discreto conteúdo sócio-político para mais recentemente, chegar a uma fase de cores fortes e pintura mais limpa e despojada. A exposição de agora não chega a ser uma fase nova, apenas anunciada, que, mesmo assim mantém aquela coerência de princípios que a pintora sempre teve. Ela certamente tem algo a nos dizer e o faz de forma fluente. Numa época em que tantos caminhos da arte são descaminhos, ela continua a não conceder a comercialismos que poderiam tornar mais fácil sua caminhada, mas talvez mais difícil olhar-se ao espelho pela manhã. É a coerência e a força que tornam quase emocionante a visita a uma exposição de alta qualidade técnica como essa.
Luiz Inácio Medeiros, outubro de 1981