Magliani - uma troca: teu olho, minha mão
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“Estar no palco me trouxe uma nova maneira de perceber o espaço que passou a fazer parte do espaço na pintura” Magliani E eis que o nome de Magliani retorna ao tradicional Theatro São Pedro depois de 48 anos. Desde o longínquo ano de 1970 quando ela preencheu este palco querido dos porto-alegrenses no papel principal do musical infantil “O Negrinho do Pastoreio”, lenda gaúcha adaptada no conto de Simões Lopes Neto, com direção de Delmar Mancuso e elenco de 24 atores e músicos. Tal retorno se dá agora através de outra estreia e de outro olhar sobre seu trabalho. Não vamos tratar daquela jovem artista ainda na descoberta do mundo, com seus riscos juvenis, mas sim da artista madura, plena de seu papel e bastante envolvida com sua obra plástica. O recorte apresentado nessa exposição situa dois momentos específicos da produção da artista. O primeiro, do período carioca compreendido entre os anos de 2004 e 2007 com obras das séries “Um de Todos”, “Retratos de Ninguém”, “Todos” e “Dançantes” e o segundo conjunto do período mineiro vivido em Tiradentes, entre 1990 e 1996, quando seu trabalho foi bastante marcado pela produção de esculturas, bem como de uma ampla série de objetos – potes – em papel machê, técnica que Magliani utilizou praticamente em toda a sua produção escultórica. O ponto de partida para a elaboração das esculturas vem de fragmentos de madeira encontrados no seu entorno que ora suportam a peça construída, servindo de base ou parte integrante da figura, ora funcionam como estrutura interna. Possuem uma brutalidade áspera e, como nas figuras em sua pintura, o drama da existência trágica. As Alterosas, como as terras mineiras são conhecidas, influenciaram poderosamente as obras tridimensionais da artista, que apropriou-se dos tons rebaixados, afeitos ao barro das estradas, à terra-mãe, à Gaia, palheta que também impregnou a sua pintura nesse período. Referindo-se ás séries “Retratos de Ninguém” e “Todos” Denise Mattar afirma “são a rigor, uma mesma série. Nela, todas as figuras trágicas e sofridas de Magliani se rendem à impossibilidade de comunicação. Elas se entregam e se tornam uma multidão de rostos – sem corpo. São rostos anônimos, que não falam, não pensam e nem sequer sofrem. Rostos diferentes mas estranhamente iguais, pequenas ilhas de medo - retratos de ninguém. Ao recortar os rostos, quase monocromáticos, Magliani acentua sua solidão, chegando a um extremo tão dolorido, que eles se tornam paralisados – apáticos. Todos apenas assistem à vida olhando para um mesmo ponto: para nós? para o nada ? ou para uma tela de TV?” ¹ Na série “Dançantes”, a artista propõe ao espectador, através do grafismo, ponto focal da série, um olhar para figuras atávicas, ancestrais. “Minha palavra é minha música, minha dança está aí; se não está claro, é porque eu não soube passar ou os outros ainda não souberam ver. Faço a minha parte e quero que aqueles que passam a conviver com o resultado me mostrem de que modo os atinge, que apresentem suas próprias conclusões. Uma troca: teu olho – minha mão”.² Magliani produziu muito, tinha urgência. Com uma capacidade rara de atuar em várias áreas, muitas vezes simultaneamente, deixou uma obra rica e multifacetada. No teatro, na pintura, na gravura, na escultura e nas redações de jornal como ilustradora e diagramadora. Sua obra fica como a soma de uma busca incessante. Ao falecer, aos 66 anos, estava em plena atividade, revolucionando internamente seu trabalho em busca de novos desafios de linguagem ao ponto de surpreender um público mais acostumado a uma atmosfera visceral em sua produção, com seus personagens carregados de drama expressionista. Em suas últimas séries, ainda pouco conhecidas do grande público, vemos uma artista enfrentando novos paradigmas, mais lírica e numa visível ponte com seus trabalhos iniciais. Pude acompanhar seu trabalho nas últimas décadas quando dividimos atelier no Rio de Janeiro – o Estudio Dezenove. Com seu falecimento, obtive o apoio oficial da família para implantar o Núcleo Magliani que passa a ser um centro de referência para organização e pesquisa do seu trabalho e resulta em um arquivo documental para acesso público. Com isso, está em curso a necessária promoção e institucionalização de sua obra, abrindo caminhos para situá-la com merecimento dentro da história da arte brasileira. Julio Castro Rio de Janeiro, março de 2018 1. Denise Mattar - folder da exposição "Trabalho Manual" Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, Rio de Janeiro, julho de 2004 2. Entrevista a João Carlos Tiburski, Editor do Boletim Informativo do MARGS, nº 32, jan/mar, 1987 |