MAGLIANI GRÁFICA
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fotos: João Guilherme Santos
Debate e lançamento do catálogo 31/8/2023
Modelos de acessibilidade produzidos pelo laboratório de conservação e restauração do MAMM-JF
MAGLIANI GRÁFICA
Recorte de uma obra singular O físico inglês Isaac Newton publicou em 1687 a Lei da Ação e Reação, que dizia “A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”. No Brasil de hoje, podemos dizer que vivemos a reação dos espíritos mais progressistas contra a barbárie estrutural no qual nosso país foi formado. Vemos o surgimento de mecanismos de inclusão social, como o programa de cotas que permitiu que populações negras e periféricas entrassem nas universidades brasileiras e o contínuo empoderamento de pessoas que não se enquadravam no estereótipo dominante (homem, branco, heterossexual). É estimulante perceber que há um movimento contrário e com força suficiente para contrapor essa triste herança e a marcar uma mudança nas estruturas empoeiradas de um Brasil misógino, racista e homofóbico. Maria Lídia Magliani (1946/2012) não viveu o suficiente para acompanhar esse processo que se desenvolveu, sobretudo na última década. Quais seriam seus questionamentos hoje, sendo uma mulher negra e uma artista de grande potencial intelectual? Seria amplamente reconhecida e respeitada como tal? Qual obra estaria a fazer? Magliani, como assim passou a ser chamada, tinha uma capacidade rara de atuar em muitas áreas para além da pintura – sua atividade mais consolidada – pois trabalhou também como atriz, cenógrafa, figurinista, além de sua produção de ilustradora e diagramadora em diversas redações de jornal. A exposição MAGLIANI Gráfica se propõe a percorrer o longo fio, citado por Denise Matar, curadora com Gustavo Possamai da grande retrospectiva de sua obra realizada em 2022 pela Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre: “Certos de que a exposição surpreenderá o público e a crítica, Gustavo e eu temos, entretanto, a consciência de que essa mostra é apenas o princípio – a ponta de um longo fio que merece ser puxado”. Em uma entrevista a artista disse que começou a pintar aos 9 anos de idade e que antes disso já desenhava e que não imaginava sua vida sem o desenho. De fato é possível perceber em sua longa trajetória que Magliani faria valer sua marca indelével em extensa obra produzida pelos diversos lugares que passou. Nasce em Pelotas, mas sua formação se dá em Porto Alegre onde a família se transfere quando era criança e passa a estudar pintura na escola de arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde é aluna do professor Ado Malagoli, seu grande incentivador. Ao longo da vida morou em São Paulo, Tiradentes e Rio de Janeiro. A mostra no Museu Murilo Mendes reúne o que podemos considerar a ponta final de seu trabalho, exceção feita apenas às sete gravuras do início dos anos 1980, entre elas, um conjunto de linoleogravuras produzidas para ilustrar o livro “O Círculo do Suicida” do escritor Eduardo San Martin. Nessa exposição esses trabalhos servem de elo para apontar a forte ligação que a artista teve ao longo de sua carreira com os recursos gráficos em sua linguagem, que podemos perceber não só nas gravuras mas também no seu desenho e na sua experiência como ilustradora nas diversas redações onde trabalhou. Em sua obra é visível a relação com a prática do traço rápido utilizado na rotina jornalística e sua produção resultou bastante extensa, se pensarmos que a artista começou a trabalhar muito cedo e, apesar dos altos e baixos do mercado de arte, sempre se relacionou com galerias e viveu de seu trabalho. Magliani trabalhava por séries e muitas vezes simultaneamente. No único exemplar representando a série “Alfabeto”, vemos que o sutiã reforça a crítica ao que cerceia a liberdade feminina. As séries “Todos” e “Um de Todos” mantém certa afinidade, sendo que os rostos individualizados da primeira transformam-se em máscaras na segunda, lembrando-nos de que “persona” em latim significa máscara de ator, em uma referência clara ao passado da artista nos palcos. “Os Outros” e “Retratos de Ninguém” dialogam diretamente entre si e podem ser incluídas na análise aprofundada e visionária com que Magliani observava a sociedade. Alguns rostos anônimos e outros nem tanto, diferentes na forma, mas de certa maneira uniformizados como em um exército de soldados perdidos e sem expressão definida. No conjunto das “Cartas”, iniciada em 2009, há na pintura uma presença acentuada da cor e da influência da xilogravura, como se estivessem presentes, nas pinceladas curtas, o corte da madeira. Já nas xilogravuras propriamente ditas percebemos uma certa fragmentação do espaço, com aspecto de colagem. “Procura-se” foi a última série, onde a palheta se reduz ao preto e branco (com raros momentos de alguma outra cor). “Manhã”; “Flora Repousa”; “Édipo no Jardim”, são obras desse período. Exibida em 2012 no Estudio Dezenove, como exposição individual, essa série desdobrou-se em pinturas, gravuras e em um álbum com oito xilogravuras em cujo folder Rubens Pileggi Sá escreve: “São pinturas e gravuras em preto e branco. Mas podem ser vistos, também, como seres deslocados, fora de seu lugar, que se juntam a coisas perdidas no meio do caminho. Bules/rostos; pano torcido/cara; objeto/pessoa. A gente vai se enchendo de coisas e as coisas estão cheias da gente. Ou, estão cheias de gente. Não é uma questão de similitude de forma. São agrupamentos quase surrealistas entre materialidades distintas. Ou colagens absurdas que só se conformam pra nos dizer sobre a inconformidade.” Nas duas últimas décadas de vida seu atelier foi no Estudio Dezenove, espaço que funcionava nesse período como um coletivo de artistas e um lugar de referência para o bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, pois era a base da equipe de produção do evento Arte de Portas Abertas, um circuito de ateliês abertos ao público que até hoje movimenta a cidade e cuja sustentação jurídica foi dada desde 2003 pela Associação de Artistas Chave Mestra, tendo Magliani como uma das suas fundadoras, já que sempre foi adepta da união entre os artistas em prol de uma consciência de classe. Após seu falecimento em 2012 os herdeiros da artista autorizaram o Estudio Dezenove a manter e organizar sua obra e a realizar impressões póstumas, que são produzidas com o mesmo rigor técnico planejado pela artista. Algumas das gravuras exibidas nessa exposição só foram possíveis graças a esse acordo, estando devidamente sinalizadas. No local criamos o Núcleo Magliani, um centro de difusão e preservação da sua obra, que passou a mapear coleções, disponibilizar material para pesquisa e atuar como facilitador nas autorizações do uso de imagem, fator importante para a efetiva circulação da obra. A exposição aponta a força e a diversidade da obra gráfica da artista, que assim como sua pintura, carrega uma forte carga expressionista. Um olhar atento encontra nela elementos psicanalíticos que a aproxima do irlandês Francis Bacon, do alemão depois naturalizado britânico Lucien Freud, este sobrinho de Sigmund Freud, e do belga René Magritte. Leitora voraz (era grande admiradora de Dostoiévski), Magliani era um ser mental por excelência e os personagens que povoam sua produção refletem isso. O Museu Murilo Mendes exibe de maneira inédita esse recorte de uma obra fecunda de uma artista que lutou para manter-se fiel a si mesma, um ser sem fronteiras, que encontrou durante alguns anos um acolhimento fraternal em Minas Gerais, como agora sua obra é recebida. Julio Castro e Sergio Viveiros Rio de Janeiro, maio de 2023 Entre extremos
Visceralidade. Fico refletindo sobre esta palavra enquanto me debruço sobre as imagens que pouco a pouco são apresentadas à minha frente. São retratos. Não, não são retratos¹, são imagens do trabalho de Magliani: parecem retratos, apenas. E o que são? São pinturas e gravuras em preto e branco. Mas podem ser vistos, também, como seres deslocados, fora de seu lugar, que se juntam a coisas perdidas no meio do caminho. Bules/rostos; pano torcido/cara; objeto/pessoa. A gente vai se enchendo de coisas e as coisas estão cheias da gente. Ou, estão cheias de gente. Não é uma questão de similitude de forma. São agrupamentos quase surrealistas entre materialidades distintas. Ou colagens absurdas que só se conformam pra nos dizer sobre a inconformidade. Preto no branco. Branco no preto. Magliani é mestiça. Negra e branca. Magliani é italiana. Magliani é brasileira. Magliani, mulher, gaúcha. Pergunto sobre as cores. Ela diz que as experiências com cores são como um hiato na história da obra dela. Ela quer a contração e a expansão máxima possível do espaço. O contraste absoluto. O branco da tela e do papel onde a impressão irá marcar a imagem que ela, pacientemente, estrategicamente, faz aparecer. Faz aparecer como víscera, identidade, como modo de alguém ser o que é. Essa é Magliani: ela é sua gravura. Ela é sua pintura. Ela é ela. Atrás de tudo isso, a elaboração. Cada goiva enfiada na placa revela uma experiência de vida. Cada passada de pincel pela tela uma afirmação: sou o que sou. Mas qual o preço que se paga para manter essa afirmação? Podemos dizer que Magliani paga o preço de ser com sua própria vida, para continuar sendo o que é: artista! O que é o artista? O artista é o fora incrustado na linguagem. Como uma craca, como uma marca indelével, áspera, dura, incômoda. Quando todos tendem a ser apenas estar, consumir, passar, Magliani grita e berra, NÃO! E continua sua longa pesquisa, tendo por companhia os fantasmas do expressionismo e as sombras pesadas e frias de sua formação no sul do país. Ainda que trabalhando bem no meio de Santa Teresa! Neste caminho sem fim, costuma sempre ouvir o eco da mesma frase: “nunca mais!²” Nesta série, no entanto, o que aparenta ter acontecido é que, de repente, o ninguém de ontem, o retrato do anônimo bestificado que ainda conservava cor, ao se perder de seus sentidos, perdeu, também, o sentido de ser retratado. Não é mais o rosto deformado e sem expressão o que se apresenta. Há um afastamento disso, também. Aquela aparente ausência de 'alma' ainda lhe dava presença. E Magliani, ao trocar o rosto de ninguém por um bule amassado, por um pano enrolado, ou outra coisa qualquer, nos faz pensar sobre a condição imposta não mais ao tolo, ao imbecil, mas a todos nós. Pois há em todos nós o dilema que é o de não ter como fugir e, ao mesmo tempo, não poder deixar de correr. É uma ironia, porque não se trata mais questionar o indiferente com as ferramentas da diferença, mas em saber que, de alguma forma, estamos sempre a um passo de nos tornarmos aquilo que nunca poderemos ser. Somos perseguidos pelo fim, mas só podemos perceber isso por uma relação de sensações de proximidade e distância e nunca pela real efetivação de tal encontro³. Talvez, por isso, o título dado por Magliani a esta série: procura-se. Preto e branco é o trágico. A tragédia nos humaniza. E a arte de Magliani é endereçada a todos que estão cercados no meio de uma montanha de coisas, objetos, acúmulos. E essa sinalização é indicada por passagens que não podem se fixar mais nas representações e, menos ainda, na pureza das abstrações. São evocações, talvez, de mundos em trânsito que não se comprazem em revelar uma moral ou uma estética, mas o indizível. Rubens Pileggi Sá, Junho de 2012 1 A frase é remetida para o famoso paradoxo do quadro de Magritte: “Isto não é um cachimbo”. 2 Frase retirada do conto “O corvo”, de Edgar Allan Poe 3 Nos paradoxos de Zenão de Elea, Aquiles nunca vence a tartaruga na corrida Na trama de Magliani (4 notas velozes)
Adolfo Montejo Navas I / Na trama dupla do fazer imaginário de Maria Lídia Magliani, da constituição visual através da técnica gráfica, o resultado sempre foi uma cosmovisão densa e tensa, com certo pathos dramático[1] na superfície, que se configurava não só com evidentes signos expressionistas, de conflito com as coordenadas do mundo obrigatório, quanto com elementos figuracionais, icônicos que se alimentavam de uma objetualidade próxima, cotidiana, mas exposta de forma convulsa, até de corte surrealista, ou então, com espaços interiores, áreas oniricamente traduzidas com seu particular grau de abstração e estranheza. Nesta chamada trama (textura e fundo) organizada pela artista, nunca foi raro contemplar um cara a cara com uma verdadeira fantasmática, um território de assombração, registros de matéria inconsciente flutuante quebrando nossa confiada representatividade. Trama-textura-visão que, em trabalhos últimos, inundava tanto as figuras como o próprio fundo (veja-se o exemplo paradigmático Da noite, 2010), com linhas/pegadas contaminando os próprios cortes/zonas da fractalizada composição. II / Com a série das Cartas (2009) endereça-se esse outro destino mais aéreo e livre de sua extensa produção no universo múltiplo da gravura. Aqui, as manchas, as partes de indefinição/definição são onipresentes, falam alto a seu sonho. E a versatilidade das sucessivas técnicas e domínio das matrizes, com sua paleta mestre de goivas (ou um uso menos preferente do buril), passa pela criação de composições heterodoxas, aquela trama bifronte anunciada em litígio. Um contraste intenso de dramaturgia, tão característico no diapasão tonal da gravura p/b, com sua dialética de negativo/positivo da luz. Contudo, estas cartas parecem estar destinadas a um mergulho ou imersão no inconsciente das coisas, das pulsões mais ocultas, o que resulta em um paradoxo artístico de Magliani, pois a quimera permanente da gravura é como escapar do universo mimético, fazer de sua trama inerente outro registro artístico, deslocando seu contexto tão exigido como gênero de fiéis sinais. Máxime quando o regime noturno que acompanha a toda gravura pós-Goeldi – referência denotada pela artista em sua obra –, com seu peso inigualável das sombras, permite ainda mais a simbiose da figuração/fulguração, o misto estatuto visual das aparições imantadas em sua galáxia suspensa e equacionada (de forma minimalista, Verbo, 2009, ou com mais coreografia de elementos, Digital, 2009). Um repertório de motivos, que vai crescer ancorado na vinculação de antagonismos modulados, em suma, no relacionável como potência, de forma cada vez mais germinal, abrangente, genésica. III / Além da já mencionada referência ao aspecto dramático, há outra figura norteadora que Magliani também cultua desde muito cedo, a consciência: aquela marcada pelo signo do grotesco (e que artistas emblemáticos como George Grosz, ou, atualmente, o cineasta Alex de la Iglesia, levaram a um ápice visual virulento, crítico, exultante como signo do espírito epocal); no caso da artista gaúcha, veja-se a sintonia com as suas imagens concentradas, de realidades tão apertadas e misturadas em seu estreito espaço interior, algo premonitório do compositivo valor dado ao espaço, à arquitetura visual, como já acontece no caso de O círculo do suicida (livro de Eduardo San Martin, que ilustrou em linóleo em 1980). Contudo, também se respira, nesta imagética, um lado cômico, grave, de certa corrosão, de humor em aspereza, nada clean nem branco. (E note-se, neste sentido, o número significativo de imagens femininas inscritas, o debate de sua presença simbólica²). Curiosamente, nossos dias reafirmam tanto a predominância do paradoxo quanto do grotesco como conceitos, como explicação mais certeira do mundo do que os grandes relatos e as subsequentes narrativas ao uso apresentam. Neste âmbito, entram tanto a objetividade simbólica, cotidiana, elementos familiares (panos ou bules, chaleira, borrifador ou sutiã), quanto os elementos plausíveis de agressividade (tesouras, serrotes). Assim como as composições ousadas, de planos e fragmentação, sempre acabaram respondendo ao imaginário projetado de rarefação e fábula, como relato de outra coisa (como exemplo, Ponto de vista, 2010, com sua figura feminina-rosto com os olhos todos apagados, naufragado em sombra o olhar). Sem esquecer, nesta poética, o grande número de imagens ingrávidas, de cabeça para baixo, recortadas, sem desejo de completude, ou então de seres misturando-se com coisas inanimadas para duvidar da natureza final desta imagética intercessora de outra semântica. IV / Já nas xilogravuras do álbum Procura-se (2012), há oito figuras objetualizadas, no qual o rosto já foi suplantado, coisificado. Também desdobrado no âmbito do desenho e pintura do mesmo nome. Em efeito, houve sempre um jogo de adivinhações da identidade que perpassou vários trabalhos da artista (Retratos falados, 1981; Retratos de ninguém, 2003/2009; Todos, 2004; Um de todos, 2005; Os outros, 2010; Procura-se, 2012). Algo evidente nesta série final, como uma galeria de retratos de ninguém (que acabou ecoando de forma muito diferente em trabalho posterior de Julio Castro), em que a identidade está em suspenso, sem definição e até substituída por elementos/situações contraditórias, subversivas, irônicas. O rosto vazio reclama seu estatuto... E o fato de ser uma obra no limiar da vida de Magliani, em rigorosa plenitude expressiva, acrescenta uma respiração interrogativa a mais. Deixada já como herança inquietante, procura, marca e traz uma ferida gravada sempre no corpo a corpo da matéria, com seu construído ruído de fundo estriado. [31/julho/2023] 1 Não parece ser alheio a esta tonalidade emocional o peso herdado e conivente da ilustração plugada à realidade visada como realismo distorcido da imagem desenhada para publicações periódicas e, dentro dessas coordenadas, alguma afinidade com o desenho de artistas latino-americanos (desde o ilustrador e artista gráfico argentino Trimano, com quem coincidiu, em algum momento, em meios impressos, até a mais distante estética de pintores como Ricardo Carpani ou Guayasamín, de massas volumétricas, quase esculturais). 2 A obra de Magliani já anuncia e corre paralela à vertente contemplada pelas novas políticas de gênero, atualmente tão em voga. |