OUTRAS PAISAGENS
|
|
A autonomia da pintura de paisagem é, de certa maneira, recente, século XVIII para XIX, com momentos pontuais no século XVII, em que pintores como Frans Post ganhavam a vida em trabalhos encomendados que buscavam menos um olhar artístico que técnico. É com o romantismo que de fato podemos perceber a ascensão desse gênero de pintura que só não era suplantado pelo da natureza morta. Conforme frisa Camile Paglia “erguendo a emoção acima da razão, a arte e a poesia românticas forneceram a espiritualidade que faltava a uma nova e dinâmica sociedade comercial, confiante em que o progresso material traria a felicidade universal. O culto romântico da natureza, suplantando a religião organizada, elevou o estatuto da pintura de paisagens, antes considerada um gênero menor. ”[1] Essa nova mentalidade gera em alguns artistas conflitos de ordem estética, “Constable e Corot viram-se divididos entre o desejo de representar a natureza como a viam e como a sentiam e o desejo de oferecer ao público representações bastante legíveis, isto é, bastante convencionais. ”[2] Desse primeiro momento em que se olhou com certo afastamento para o conjunto de princípios clássicos aos dias de hoje, muitas etapas foram iniciadas e concluídas, enquanto os que vieram a partir daí foram recebendo o legado das adaptações e a elas associando investigações que extrapolaram mesmo o campo bidimensional em que se originaram, mas isso é conversa para outra mostra. Outras Paisagens tem o caráter de reunir quatro artistas que apresentam em comum a pintura, aqui selecionada pelo viés das paisagens as quais apresentam em contextos diversos, e o fato de estarem baseados em São Paulo. Aloysio Pavan, em um conjunto de cinco telas, abrange justamente a extensão de experimentações que se deu lá no século XIX, atravessaram o XX e chegaram ao XXI ainda com fôlego suficiente para serem objeto de retomadas por artistas que já não estão presos a sistemas convencionais e que, por outro lado, desmaterializam fronteiras pictóricas e se servem do vasto leque de possibilidades que a tradição propiciou. Pavan, longe de desconhecer essa tradição, dela se apropria e exalta em suas pinturas percursos históricos que podem ser lembrados nas montanhas de Caspar David Friedrich, nos céus de René Magritte, nos vales de Constable e Corot, e ainda de contemporâneos como Peter Doig e seu Pink Briey. Não se deve confundir, em todo caso, a análise da forma com o conteúdo da obra, a pujança da pintura de Pavan está não em seus aspectos formais, mas em suas referências memoriais, o que faz de suas paisagens um resgate do afeto. A paisagem urbana/social que Fátima Junqueira nos proporciona nos remete às aquarelas dos tipos humanos do Rio de Janeiro do português Joaquim Cândido Guillobel, estudadas e ponto de referência a outros artistas no Brasil do século XIX como Thomas Ender e mesmo Debret. A temática escravagista conforme salienta Rodrigo Naves em seu livro A Forma Difícil sobre os registros de Guillobel chama nossa atenção pela “dificuldade em reunir as partes do corpo que realça, na própria estrutura corporal, o esforço realizado pelos negros (...) o esgotamento de corpos que não conseguem alcançar o estatuto de verdadeiros sólidos”.[3] Como que parafraseando pictoricamente aquele artista, Junqueira fragmenta não apenas corpos, mas o próprio tecido espaço-tempo, revelando a liquidez contemporânea apregoada por Zigmunt Bauman – nada mais é feito para durar, nem mesmo os laços humanos. Em suas pinceladas percebemos os instantes que compõem as relações volúveis (pelas contraposições cromáticas) de um mundo fluido, dinâmico, contudo entrópico. No esteio do filósofo polonês, podemos perceber nas telas circulares de Geraldo Souza Dias quão instáveis são as conexões que podemos fazer. Os rebatimentos imagéticos propostos pelo artista nos lançam ao questionamento da própria arte, seria ela descartável tanto quanto nossas relações interpessoais ou, como no entender de Waldemar Cordeiro, ela é o que é? Souza Dias nos faz correr em círculos, de uma tela a outra, em busca de uma racionalidade que não mais se justifica por princípio, ou melhor, nenhum princípio justifica nenhuma razão. Seu espectro de absorção do mundo põe lado a lado colmeias e condomínios, o subúrbio e o mar, a arte criativa e a não-figurativa. É então que percebemos o vigor alcançado em sua pesquisa que, longe de ser meramente herdeira das intenções objetivas e racionais do mestre ítalo-brasileiro, transcende em direção a uma realidade verdadeiramente autônoma, transgressora mesmo, em que a arte deixa de ser símbolo sim, porém, mais do que ser, ela está em nossas vidas. O Horizonte/Tempo de Cynthia Vasconcellos é uma colcha de retalhos de acontecimentos registrados que se delineiam ao longo de uma skyline imaginária que nos remete ao inalcançável (horizonte) e ao impalpável (tempo). O núcleo do trabalho que oferta ao observador é um rebatimento complexo dos artistas presentes nessa exposição seja pelo acúmulo visual, pelas áridas descrições, pelas reinterpretações do real, tudo em um lúdico processo de desvendar o início e o fim pelo meio das coisas, uma média aritmética que não se põe a termo, senão pelo banal. Aí reside um dos assombros que acomete a contemporaneidade, tudo vem se tornando banal numa ordem que vemos se equalizarem sentimentos díspares, tanto quanto se harmonizarem equívocos canhestros. Vasconcellos torna visceral as inconformações de seu tempo que parece desprovido de esperança (e repleto de clichês como a própria esperança se tornou), cria uma linha divisória sem ponto de fuga, sem perspectivas, entretanto com muitas insinuações, tantas quantas cabem na imaginação. Outras Paisagens é, por seus próprios meios, uma ocasião oportuna de falarmos de nosso olhar para o mundo, dos diferentes pontos de vista, da diversidade e da relatividade do sujeito que não é observador absoluto (absolutamente) como sentenciou Merleau-Ponty, “o que temos são histórias pessoais vividas na coletividade. ”[4]Esse é o ponto de partida, o exercício do olhar que não deve se aferroar pela coincidência ou pela razão com a realidade numa tentativa de coerência, tendo em mente que “o olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio. “[5]. Os artistas presentes nessa mostra são uma parcela dessa consciência que vasculha e revela outras paisagens. Osvaldo Carvalho [1] PAGLIA, Camille. Imagens Cintilantes – uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars. Rio de Janeiro: Apicuri. 2014. p. 85. [2] FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1990. p. 111. [3]NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil – ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Editora Ática. 2001. p. 97. [4] ARANHA, Carmen S. G. Exercícios do Olhar. São Paulo: Editora Unesp. 2008. p. 16. [5] MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac &Naify. 2004. p. 19. |