Palavras Cruzadas
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Palavras Cruzadas
Arte é, antes de mais nada, uma palavra, uma palavra que reconhece quer o conceito de arte, quer o fato de sua existência. Sem a palavra poderíamos até duvidar da própria existência da arte. H. W. Janson A palavra por si só possui um corpo distinguível que é de reconhecimento imediato e amplo dentro do conjunto daqueles que são capazes de decifrar seu código, equivale dizer aos que são iniciados na ordem alfabética, assim chamados de alfabetizados. O período de aprendizagem da imagem vem antes, é constituído no momento em que a visão encontra o mundo a sua volta. Gradativamente aprendemos a reconhecer e a dominar cores e formas, sombras e luzes, dimensões espaciais. Palavras e imagens são duas instâncias que se interpenetram na construção da linguagem.[1] Mas a proposição é para a linguagem o que a representação é para o pensamento: sua forma, ao mesmo tempo mais geral e mais elementar, porquanto, desde que a decomponhamos, não reencontraremos mais o discurso, mas seus elementos com tantos materiais dispersos.[2] Verificamos a palavra cingida nos vaticínios da linguagem sem, contudo, significá-la, posto que a palavra apenas se faça como tal quando deixa de ser expressão lateral e passa a se valer por um juízo ou uma declaração, erigindo, portanto, uma proposição. O limiar da linguagem está onde surge o verbo. É preciso tratar esse verbo como um ser misto, ao mesmo tempo palavra entre as palavras, preso às mesmas regras, obedecendo como elas às leis de regência e concordância; e depois, em recuo em relação a elas todas, numa região que não é aquela do falado, mas aquela donde se fala.[3] E toda fala se mantém nesse desgaste das palavras, nessa espuma sempre arrastada para mais longe, e só existe fala quando a linguagem funciona com evidência como uma devoração que não retira senão a ponta móvel das palavras.[4] As condições em que nos encontramos diante das palavras, em contraste com as imagens, nos remetem aos extratos dos significantes, ou seja, à forma. No entender de Wilson Martins, pouco a pouco a imagem transborda do seu papel meramente subsidiário de linguagem auxiliar para usurpar funções tradicionalmente reservadas à palavra. [5] As artes plásticas implicam notadamente quanto ao fato de sua pura visualidade. Mas ressalve-se o fato de que não foge ao raciocínio, aliás, convida-o a fazer parte da elucidação do olhar. É claro que no entender daquele autor estamos vivendo um extraordinário paradoxo: no ponto mais alto da sua evolução, o livro reencontra o ponto exato de que partiu na sua pré-história, e a imagem, que prenunciava a palavra escrita, quando ela ainda não existia, substitui-a agora, quando ela se transformou no mais fino instrumento da inteligência humana.[6] O advento da rápida difusão de computadores e meios de comunicação instantânea mundo afora, fez com que o homem contemporâneo se lançasse às imagens de maneira voraz. Os ícones gráficos tornaram-se verdadeiros escritos que muitas vezes compreendem sentenças completas numa única tacada. Quem hoje não reconhece os símbolos do windows? Basta apenas falar e nos vem à cabeça uma pasta amarela e com ela tudo o que aquilo significa. Por conseguinte, não é que o homem contemporâneo não leia romances: ele os vê, diariamente nas salas de projeções. Ver o romance é ainda um esforço singularmente amenizado pelos deuses vigilantes que nos protegem: qualquer volume que nos exigiria 3 dias de leitura intensa pode ser ingerido numa hora e meia de espetáculo. E qual o escritor cujo vigor sugestivo se possa comparar às figuras humanas que se movem na tela? (...) é que a imagem está matando a imaginação e o homem que está cada vez mais apenas “vendo” deixa atrofiarem-se lentamente as suas faculdades de pensar.[7] Mensuradas as discrepâncias e nem tanto radical na análise dessa volta à imagem exclusivamente, podemos entender que essa soberania de uma sobre a outra, princípio reinante na arte do século XV ao século XX, no qual se afirma a separação entre representação plástica e referência linguística onde, faz-se ver pela semelhança, fala-se através da diferença,[8] é rompida com a cena moderna, observadas as obras de Klee e suas justaposições e sintaxe dos signos, na qual não se trata absolutamente de um desses caligramas que jogam com o rodízio da subordinação do signo à forma, depois da forma ao signo, (...) o que supõe que eles se encontrem num espaço completamente diverso do do quadro.[9] As consequências de um mundo acelerado pelas novas configurações tecnológicas nos põem o debate do que se passa diante dos olhos ou mesmo o que queremos, já que muitas vezes podemos apenas retirar uma breve mensagem. Um texto jornalístico hoje se concentra numa notícia quase que sumária e descritiva dos fatos em muitos casos reconhecíveis na fotografia que o acompanha. Se queremos uma análise mais apurada, uma interpretação para tais fatos, devemos procurar uma das colunas do jornal, onde estará uma descrição menos objetiva e mais analítica feita por alguém dito especialista seja em política, futebol, negócios, etc. Mas como bem observa Donis Dondis, as implicações da natureza universal da informação visual não se esgotam em seu uso como substitutivo da informação verbal.[10] Exatamente aí compreendemos que ambas não estão em conflito, mas em equilíbrio, cada qual com suas especificidades, ainda que o modo visual não tenha sido utilizado em sua plenitude.[11] Toda nossa experiência da pintura, por exemplo, compreende, de fato, uma considerável parte verbal. Nós não vemos simplesmente um quadro, nossa visão não é jamais pura visão. Nós falamos das obras, ouvimos a crítica de arte, nosso olhar é todo ele cercado, todo preparado por uma aura de comentários, mesmo para a produção mais recente.[12] Ao partirmos para uma jornada cultural de fim de semana, invariavelmente já lemos algo, um catálogo, um folder, um convite, todo um arcabouço escrito nos prepara. É um equívoco pretender que estes universos, o da palavra e o da imagem, estejam dissociados. Porém, quando ocupam o mesmo espaço da arte, muitas vezes geram confusões inerentes a modelos equivocados de abordagem que não premiam a pluralidade disciplinar e intercambiável que permeia o verbal e o visual. A palavra que é imagem ou a imagem que é palavra, tão-somente assim o é por suas próprias origens, uma está para a outra em contínua transposição. Osvaldo Carvalho [1] DIAS FILHO, Geraldo de Souza. Babel. Inédito. 2006. [2] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes. 2007. p. 128. [3] Idem. p. 129-130. [4] BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 18. [5] MARTINS, Wilson. A palavra escrita–história do livro, da imprensa e da biblioteca. São Paulo: Editora Ática. 1996. p. 418. [6] Idem. p. 419. [7] Ibidem. p. 419-421. [8] FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. São Paulo: Paz e Terra. 2002. p. 39. [9] Idem. p. 40-41. [10] DONDIS. Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual.São Paulo: Martins Fontes. 2007. p. 185. [11] Idem. p. 186. [12] BUTOR, M. Les mots de la Peinture. Paris: Skira. 1969. p. 6. |