Entre extremos
Visceralidade. Fico refletindo sobre esta palavra enquanto me debruço sobre as imagens que pouco a pouco são apresentadas à minha frente. São retratos. Não, não são retratos¹, são imagens do trabalho de Magliani: parecem retratos, apenas. E o que são? São pinturas e gravuras em preto e branco. Mas podem ser vistos, também, como seres deslocados, fora de seu lugar, que se juntam a coisas perdidas no meio do caminho. Bules/rostos; pano torcido/cara; objeto/pessoa. A gente vai se enchendo de coisas e as coisas estão cheias da gente. Ou, estão cheias de gente. Não é uma questão de similitude de forma. São agrupamentos quase surrealistas entre materialidades distintas. Ou colagens absurdas que só se conformam pra nos dizer sobre a inconformidade.
Preto no branco. Branco no preto. Magliani é mestiça. Negra e branca. Magliani é italiana. Magliani é brasileira. Magliani, mulher, gaúcha. Pergunto sobre as cores. Ela diz que as experiências com cores são como um hiato na história da obra dela. Ela quer a contração e a expansão máxima possível do espaço. O contraste absoluto. O branco da tela e do papel onde a impressão irá marcar a imagem que ela, pacientemente, estrategicamente, faz aparecer. Faz aparecer como víscera, identidade, como modo de alguém ser o que é. Essa é Magliani: ela é sua gravura. Ela é sua pintura. Ela é ela. Atrás de tudo isso, a elaboração. Cada goiva enfiada na placa revela uma experiência de vida. Cada passada de pincel pela tela uma afirmação: sou o que sou. Mas qual o preço que se paga para manter essa afirmação? Podemos dizer que Magliani paga o preço de ser com sua própria vida, para continuar sendo o que é: artista! O que é o artista? O artista é o fora incrustado na linguagem. Como uma craca, como uma marca indelével, áspera, dura, incômoda. Quando todos tendem a ser apenas estar, consumir, passar, Magliani grita e berra, NÃO! E continua sua longa pesquisa, tendo por companhia os fantasmas do expressionismo e as sombras pesadas e frias de sua formação no sul do país. Ainda que trabalhando bem no meio de Santa Teresa! Neste caminho sem fim, costuma sempre ouvir o eco da mesma frase: “nunca mais!²”
Nesta série, no entanto, o que aparenta ter acontecido é que, de repente, o ninguém de ontem, o retrato do anônimo bestificado que ainda conservava cor, ao se perder de seus sentidos, perdeu, também, o sentido de ser retratado. Não é mais o rosto deformado e sem expressão o que se apresenta. Há um afastamento disso, também. Aquela aparente ausência de 'alma' ainda lhe dava presença. E Magliani, ao trocar o rosto de ninguém por um bule amassado, por um pano enrolado, ou outra coisa qualquer, nos faz pensar sobre a condição imposta não mais ao tolo, ao imbecil, mas a todos nós. Pois há em todos nós o dilema que é o de não ter como fugir e, ao mesmo tempo, não poder deixar de correr. É uma ironia, porque não se trata mais questionar o indiferente com as ferramentas da diferença, mas em saber que, de alguma forma, estamos sempre a um passo de nos tornarmos aquilo que nunca poderemos ser. Somos perseguidos pelo fim, mas só podemos perceber isso por uma relação de sensações de proximidade e distância e nunca pela real efetivação de tal encontro³. Talvez, por isso, o título dado por Magliani a esta série: procura-se.
Preto e branco é o trágico. A tragédia nos humaniza. E a arte de Magliani é endereçada a todos que estão cercados no meio de uma montanha de coisas, objetos, acúmulos. E essa sinalização é indicada por passagens que não podem se fixar mais nas representações e, menos ainda, na pureza das abstrações. São evocações, talvez, de mundos em trânsito que não se comprazem em revelar uma moral ou uma estética, mas o indizível.
Rubens Pileggi Sá
1 A frase é remetida para o famosos paradoxo do quadro de Magritte: “Isto não é um cachimbo”.
2 Frase retirada do conto “O corvo”, de Edgar Allan Poe
3 Nos paradoxos de Zenão de Elea, Aquiles nunca vence a tartaruga na corrida