Saudades do futuro Marcos Acosta Texto Rubens Pileggi Sá 11 de junho a 17 de julho de 2016 |
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A pintura de Marcos Acosta segundo a invenção de Morel
A realidade agora não é mais a mesma de 30, 40 anos atrás, porque o modo como nosso olho captura o que está à nossa volta possui outra qualidade perceptiva, particularmente em termos da velocidade informacional. Isso nos levaria, então, a julgar que a pintura, ainda mais aquela realizada com tinta à base de óleo, seria uma atividade anacrônica na atualidade. Ou, ao inverso, dada a pluralidade reivindicada pela pós-modernidade, que, justamente pela sua defasagem, ela ainda poderia ser atual por um processo de recuperação fetichista, como uma espécie de moda vintage. Mas não é uma coisa e nem outra, pelo menos no caso de uma pintura vigorosa que continua a ser produzida, mesmo com todos os vaticínios de sua morte e, por extensão, da morte da arte. Trata-se, pois, de uma pintura que é ao mesmo tempo rigorosa em sua execução e qualidade formal sem abrir mão do conceito e do contexto onde ela se produz. Portanto, ao mesmo tempo em que ela toma para si o olhar do mundo, também se propõe ao diálogo com suas origens locais. Uma arte atual, pois, uma vez que não perde sua referência histórica. No caso de se pensar as experiências sul-americanas, não podemos deixar de levar em consideração as influências advindas tanto do Expressionismo quanto do Construtivismo em nossa formação cultural e artística. Enquanto uma propõe uma arte carregada de sentimento, expressão orgânica e se apoia na figuração, a outra é baseada na linha geométrica e racional, baseada na lógica e na abstração. Enquanto no Brasil optamos por uma arte voltada para a sensorialidade, como uma espécie de busca pela conciliação, na maioria dos países vizinhos podemos perceber que a produção artística ou tem um caráter politicamente mais definido ou, então, possui um apelo maior para o lado visual, de filiação àOp Art. Nesse sentido, a obra do artista argentino Marcos Acosta, radicado na cidade de Córdoba, nos coloca uma série de questionamentos que, longe de se encerrarem em uma visão de mundo distante da nossa própria realidade, reforçam, inclusive, certas experiências advindas do Concretismo e do Neoconcretismo, propondo, inclusive, uma outra e nova mirada para essas mesmas questões acima levantadas. Ou seja, a de resolver o problema entre a relação da forma com o tema de modo a não ter que decidir nem por uma e nem por outra e, ao mesmo tempo, sem procurar fundi-las em uma síntese. Como dois corpos em luta contínua, Acosta entende que tanto a figuração quanto a abstração podem ocupar, ao mesmo tempo, o espaço da tela, fazendo com que sentimento e racionalidade se digladiem ou se entendam o quanto queiram. Desse modo, permite que o paradoxo e a contradição se instalem no interior do espaço enquadrado para, assim, tirar melhor proveito entre matérias que se envolvem umas com as outras, como forças que apontam, cada uma, para caminhos opostos. Nesse embate, o mais interessante é que, no mesmo gesto, essa dicotomia é ressaltada – e preservada – continuamente. Basta-nos aproximar de uma de suas pinturas para perceber como o artista valoriza sua pincelada, fazendo com que cada marca nos indique também o oposto do que ela aparenta ser. Tal operação, tão calculada e, ao mesmo tempo, tão impregnada de desejo, é claramente visível tanto no tema quanto na composição pictórica que, finalmente, se dá à visibilidade, iluminando-se desde seu interior até chegar às nossas retinas e, de lá, aos nossos sentimentos e pensamentos. Ou melhor, às nossas sensações, como conceitua Deleuze sobre as forças que concorrem na apreciação da obra de Francis Bacon. Gostaria de apontar, também, algumas aproximações que percebo entre o trabalho realizado por Marcos Acosta e a arte de alguns mestres, como Giorgio de Chirico, no tocante à criação de um cenário onde as formas atuam como se fossem atores em um palco a encenar um espetáculo de massas, linhas e cores de um sonho metafísico. E, também, com a produção de Richard Hamilton e Gerhard Richter, levando em consideração um problema de distância que se anuncia desde o título da exposição em cartaz no Estúdio Dezenove, que é “Saudades do Futuro”, uma vez que o ponto de partida na pintura desses artistas é a imagem fotográfica, tal como em Acosta. Portanto, trata-se de pensar a pintura que é possível de ser feita em uma época cuja velocidade da informação visual torna toda imagem um aglomerado combinado de pixels eletrônicos. Assim, se Acosta pinta essas representações, ele o faz ‘freando’ a passagem do tempo, empastando a superfície onde ocorre a imagem, ralentando o espaço até que o acontecimento já processado possa ser previsto em seus desdobramentos. Como se pudéssemos desmontar a história e remonta-la, para que, no futuro, o único modo de entender o que estamos vivendo agora seja através da ficção. É como se nos colocássemos no lugar do personagem Morel, do livro de Bioy Casares que, ao descobrir que sua amada era uma imagem virtual que vivia dentro de uma projeção previamente gravada, gravou-se a si mesmo ao lado dela. Desse modo, sabendo estar condenado à morte, Morel tratou de eternizar seu amor em imagens que iriam perdurar para além de sua vida. No mais, falar dos aspectos formais dessa pintura pungente de Acosta seria como tentar dissecar um cadáver que irá morrer amanhã, segundo o jornal de anteontem. Faço dela, então, espelho e reflexo para minha própria escrita, apropriando-me poeticamente das relações que essa pintura cria. E que me tocam em um lugar ao mesmo tempo tão familiar e tão estranho. Ou melhor, em um lugar em mim familiarizado com esse estranhamento. Rubens Pileggi Sá |