[Calendário noturno / Conversando com Victor ao telefone]
Quando o protagonista acorda e se levanta à uma hora determinada, já há uma idade esperando que o represente: às 03:00 h da madrugada, a sua aparência, infalível, tem 48 anos exatos. Se por acaso o despertar de repente é às 06:10 h da alvorada, o rosto diz que a idade não importa tanto quando se tem mais ou menos 67. Às 04:25 h, as probabilidades de não se reconhecer mais deste mundo aumentam, a insônia ronda com seu moto-contínuo sem idade. Outros intervalos mais elásticos e com motivos miúdos de deixar de dormir, o convidam para se identificar como um zumbi bebendo água. Há uma numerosa tabela fixada na geladeira onde se registra esta coleção de fisionomias acidentais com suas devidas correspondências. Um calendário noturno próprio de impromptus temporais competindo em marcações, dentro da partitura da noite. Em troca destas equações metódicas, antes das 01:30 h, a juventude se reconhece no espelho do banheiro, os olhos se fitam a si mesmos, o fulgor existe. Não há fantasmas, velho Egito nem paranoias de selvagens de cabelos arrepiados atravessando corredor nenhum. Já de dia, antes do café da manhã, todas estas variáveis se articulam em uma ars combinatória que não exclui nada. E onde cada alquimista mexe como pode com seus vasos comunicantes. [25/II/2022] [O telefone como médium] Com Victor Arruda não há chamada fútil, conversa distante, intranscendente (com Waly Salomão na lembrança tão pouco). Longe disso, a fala é um campo aberto a qualquer coisa que faça sentido, ou não, a primeira vista (Groucho Marx sabe tanto como Samuel Beckett disso). De fato, valem todas as referências possíveis, engatadas e se misturando, tudo cruzado, intermediado o campo da arte e da vida, porque nunca fazemos separações ou respeitamos compartimentos estanques que sonhem com a completude ingênua, aquela totalidade para inglês ver. Daí saem loucuras que limitam só com as gargalhadas, gags a prova do melhor cinema, e também coisas, análises fora do comum, projetos, desdobramentos, produções a partir de coisas inusitadas como falar de um texto de prosa recente que possa ter a ver, como uma mínima ficção que se pode atrelar a uma fábula temporal de uma parte da obra de Victor Arruda, aquela que é produzida noturnamente, e que respira certa admiração nada secreta por On Kawara, ainda que os tempos sejam sempre outros, bem mais dilatados no artista japonês e mais instantâneo e próximos em nosso caso comum. Há toda uma constelação de trabalhos noturnos do artista que sintonizaria com esta prosa parabólica, que faz parte de seu quase infinito caleidoscópico de desenhos feitos fora de hora, em alguma homenagem implícita à insônia (ou à alvorada). E como parte destas mil e uma noites de Victor Arruda, dentro de uma mesma noite não tão veloz, esta sequência fala de outro tempo em branco, em negativo, mais intenso que cronos. A tal reconhecida versatilidade e pulsão visual extrapola as horas definidas e seus cronômetros em flor, ou melhor, fixa momentos, relances desabrochando. O telefone como médium também é testemunha exemplar de muita produção. A conversa gira e retoma a sequência anterior, o telefone queima nos ouvidos quando se fala tanta coisa misturada, como acontece nos desenhos ou pinturas (em coleções de caneta bic de arquiteturas labirínticas que revolucionam as tranquilas geometrias de Mondrian, ou séries longas como You are still alive, 2018 ou Sou fã de, 2020/21, ou esta que reclama agora nossa atenção como uma insônia numerada, 2022). Palavras sobre a guerra geopolítica dos interesses ou a necessidade de fazer uma estátua dedicada no hall da entrada, com direito a fonte ou torneira, são sempre bem-vindas, tanto como anedotas reais ou cinematográficas, Mae West, Picasso ou Maurizio Cattelan, ou a lembrança de Wladimir Dias Pino, o homem que escapava às perguntas, ou então a escrotice governamental ou familiar, pois tudo roda a alta velocidade verbal, até que o aparelho simula não estar presente, desaparece, mas sempre intuímos, pensamos, abertamente, que alguém deve estar escutando em certo sigilo nosso modelo de mistura e manda, e nossa falta de linguagem encriptado (?) ou de dissonância cognitiva - algo tão fora de moda oficialmente – seja um aspecto complicador para a escuta dos outros, e talvez o serviço de espionagem esteja meio assustado de tanto diálogo costurado, paradoxal a registrar, por isso às vezes saudamos ao outro lado; aliás, há momentos de ruídos estranhos no aparelho, mas não faz mal, o importante é não perder o fio da meada. [6/VII/2022] adolfo montejo navas . |