SÉRIE VITRINE PANDÊMICA
Quando o vírus duplo do Brasil virou pandemia, afetando milhões de pessoas, e o número de mortos superou os 500.000, a arte, como qualquer atividade digna do espírito, do gênero humano, ficou estatelada, estupefata. Quase muda. O impacto demônico ou perverso, como se sabe, também tem sua indústria, inércia, incluso colaboracionismo. O negacionismo nega até o luto. Mas no meio da assombração, a exposição que representa a doença – também política – pede outra vitrine simbólica – leia-se representação – que não a meramente midiática, circunstancial, ilustrativa, burocrática, pede responder melhor, precisamente, com outro olhar: de respeito pelo ser que somos quanto mais procura seu humanitas possível, no extremo de seus limites. E, ao mesmo tempo, tudo vem exigindo, requerendo uma mirada de altura crítica, que ofereça uma imagética ético-estética para as circunstâncias: inferir outra lógica visual e perceptiva das coisas, menos ligada à narrativa da morte, à imposição de tânatos. Diante dos tempos de tirania iníqua, se precisam mais declarações e práticas de vida, reinaugurações. Fora do cerco cego, embestado, da história obrigatória, a ideia desta Vitrine Efêmera Pandêmica ressurge em sintonia, traz algo oportuno, uma iminência artística consequente, novas experiências/formas que ajudam a redimensionar o real, sempre em crise de legitimidade verdadeira. As novas propostas visuais desta Vitrine Efêmera Pandêmica só podem ser urgentes, e apesar de lidar com o lógico confinamento (aliás, quem mais proclama liberdade de contágio nunca foi amigo da liberdade de expressão, por exemplo), elas são ainda mais necessárias, porque em seu dever espiritual, desconfinam; e, paradoxalmente, nos enraízam, propugnando outro habitat mais amplo e profundo, longe da proclamada e falsária domesticação do mundo. (AMNavas/2021)
Quando o vírus duplo do Brasil virou pandemia, afetando milhões de pessoas, e o número de mortos superou os 500.000, a arte, como qualquer atividade digna do espírito, do gênero humano, ficou estatelada, estupefata. Quase muda. O impacto demônico ou perverso, como se sabe, também tem sua indústria, inércia, incluso colaboracionismo. O negacionismo nega até o luto. Mas no meio da assombração, a exposição que representa a doença – também política – pede outra vitrine simbólica – leia-se representação – que não a meramente midiática, circunstancial, ilustrativa, burocrática, pede responder melhor, precisamente, com outro olhar: de respeito pelo ser que somos quanto mais procura seu humanitas possível, no extremo de seus limites. E, ao mesmo tempo, tudo vem exigindo, requerendo uma mirada de altura crítica, que ofereça uma imagética ético-estética para as circunstâncias: inferir outra lógica visual e perceptiva das coisas, menos ligada à narrativa da morte, à imposição de tânatos. Diante dos tempos de tirania iníqua, se precisam mais declarações e práticas de vida, reinaugurações. Fora do cerco cego, embestado, da história obrigatória, a ideia desta Vitrine Efêmera Pandêmica ressurge em sintonia, traz algo oportuno, uma iminência artística consequente, novas experiências/formas que ajudam a redimensionar o real, sempre em crise de legitimidade verdadeira. As novas propostas visuais desta Vitrine Efêmera Pandêmica só podem ser urgentes, e apesar de lidar com o lógico confinamento (aliás, quem mais proclama liberdade de contágio nunca foi amigo da liberdade de expressão, por exemplo), elas são ainda mais necessárias, porque em seu dever espiritual, desconfinam; e, paradoxalmente, nos enraízam, propugnando outro habitat mais amplo e profundo, longe da proclamada e falsária domesticação do mundo. (AMNavas/2021)
VITRINE PANDÊMICA VI Mauro Espíndola - INVITROPTICUS 20/8 a 24/9/2022 Curadoria Adolfo Montejo Navas BIFOCAL, BIESPIRITUAL
“A ausência de um mundo comum está nos enlouquecendo" Bruno Latour A vitrine pandêmica de Mauro Espíndola vem a falar de outro vírus, talvez mais arcaico e cultural, aquele referenciado à nossa imperfeita e muitas vezes cruel relação com uma parte significativa da natureza: os animais mais livres, e em consequência, com seu próprio entorno como metáfora. Aliás, vem sendo colocado em pauta, mais ou menos recentemente, outra visão e interpretação do vivo, que responde – ou pretende responder – a um chamado cada vez mais cosmológico que simplesmente biológico ou ecológico. Se trata, portanto, de algo mais na órbita da relação que do domínio, da correspondência que da mera funcionalidade. E neste novo giro, há, portanto, outro destino e outra ilustração do mundo em jogo menos predatória. Onde incluso o protocolo do politicamente correto ainda fica muito mais curto em seu engodo de conveniências pensantes, em seu bem-estar instrumental. Daí que uma das configurações mais instigantes e paradoxais da poética do artista carioca-riograndense seja, precisamente, uma espécie de arqueologia artística do saber, um trabalho de campo vinculado à entidade e cultura que todavia representam os animais, e por extensão, a biodiversidade de sua genealogia, seu habitat genuíno, e leia-se assim, claramente, fora do recinto doméstico, como se este fosse insuficiente, também uma armadilha consensuada mais para a consciência, para nosso escapismo ou evasão (e que um universo burguês como o dos pet shops não consegue simular). A não esquecer nesta particular e rara vitrine, portanto, como o escapismo de nossa realidade faz parte do mais evidente negacionismo, conforme em dia apontou o pensador francês da epígrafe. Porque nessa direção, nós acrescentaríamos que o negacionismo não só faz parte de um delírio interpretativo quanto sobretudo de uma droga, funciona como um paraíso artificial. Nessa tal fuga histórica em promoção, a presente Vitrine pandêmica (VI e última da série) estabelece o lugar de uma afronta estética. E de um confronto perceptivo: a paisagem de uma animália explicitada de forma iconográfica, ou seja, sintética e simbolicamente. A adoração imagética que se deriva desta instalação aqui responde a uma profanação real. Com seus termos acusadores no título: Predactorium, Operactus, Insolictus, Delictum. A imagem desenhada de uns tatus em várias formas, taxonomicamente expostos em posturas clássicas de lateral e frontal (sem espírito de açougue ou de caça esportiva, esse outro eufemismo da violência), atende ao caráter que a ciência, como território contíguo e construtivo, tem em um heterônimo de Mauro Espíndola chamado Emanoel Leichter, dono de biografia própria em seu outrar-se. Ciência, diga-se em seguida, vestida aqui de seu lado experimental, ambíguo, e até ficcional, na medida em que os critérios de verossimilitude e verismo sofrem certa erosão, certa suspeita ou dúvida em pós (ou em pró?) de outras considerações mais livres ou abertas. Também não é de agora que o descrédito do positivismo científico – como o da história – atingiu uma altura já cética, melancólica, e sua crise mais sensata se alia com os propósitos atuais da arte, sem recorrer aos primórdios mais vinculantes. A intervenção de Mauro Espíndola/Emanoel Leichter em si se pluga em duas dimensões de percepção, ou melhor, exige duas aproximações diferentes, e nesse sentido é bifocal: por requerer uma leitura visual e verbal contígua em duas distâncias, pois de perto enxergamos diferente que de longe. Um inequívoco caráter de poesia visual expandida gera-se aqui, pedindo outra leitura dos signos na vitrine (a equação desenho, texto, espaço, olhar). Sabendo já que neste desenho frottage até o próprio papel-carbono vai intermediar seu lado orgânico. Assim como a língua dos dedos chega até a palavra. Sabendo, também, que este documento de trabalho, antes de chegar até aqui, como site specific, passou por vários suportes devido à sua natureza em transe, derivada de uma coleta – o artista como etnógrafo –, de fotografias, desenho e conquista do espaço como o tônus transitivo do projeto. Daí que a sua condição, retomando, seja duplamente bifocal, por estarmos saindo dessa outra falsa dicotomia que possa separar local e global, quando não há hiato possível quando tudo está em perigo, concatenando causas e efeitos. Como outro sentimento do mundo e do tempo, se escutássemos melhor, como uma filosofia da natureza e uma ecologia política são urgentes. A semântica do trabalho traduz, em linguagem ironicamente científica (em uma corruptela do latim misturado com português arcaico, marca do artista), uma denúncia da barbárie que a cultura comporta. Reconecta-se com o veredito clássico e assustador de Walter Benjamin, que frisava que "todo documento de cultura é também um documento de barbárie". E não é preciso salientar o exemplo no Brasil atual, o ululante recuo histórico e humanista provocado por uma política hedionda e perversa a todos os efeitos, menos para alguns interesses minoritários que pugnam sempre por seu disfarce e conveniência. Na razão desta coexistência apontada antes, entendida como fricção, um vetor do trabalho de Mauro Espíndola/Emanoel Leichter atende à lógica de outro sentido mais humanista e sensível – uma antropologia artística em curso; daí que sua obra possa funcionar como antídoto visual, aviso, vacina, cura. Adolfo Montejo Navas [julho, 2022] Mauro Espíndola (São João de Meriti, RJ, 1962). Artista visual, investiga a natureza humana em seus aspectos psicológicos, éticos e culturais, através de desenhos, pinturas, objetos, instalações, livros de artista, filmes e vídeos, elaborando questões que fazem parte de seu repertório como nos projetos Victal & Sons (2002/06), The Mirror Method (2007/09), Nactividade (2009/12) e Stepchildrenland (2011/13). Atualmente vive e trabalha no estúdio instalado no Moinho da Capivara, habitação rural situada a cerca de 70 km ao norte de Porto Alegre, RS, onde desenvolve o projeto ANIMALIS IMAGINIBVS, lugar de heteronímias, necroinventários e catalogações pseudocientíficas. https://www.mauroespindola.com.br
VITRINE PANDÊMICA V Zalinda Cartaxo - NEGRA < LUZ > BRANCA 02 a 30/7/2022 Curadoria Sonia Salcedo del Castillo na clausura, toda fresta é ar, respiro, luz...
Sonia Salcedo del Castillo, junho I 2022 “13:10h, T. Oriente 16 A”, eis as coordenadas da quinta vitrine pandêmica: negra < luz > branca ꟷ um marco (in)temporal assinado por Zalinda Cartaxo. Nela, há um quê de esperança; outro, de nostalgia. Um tanto de solitude; outro, de resiliência. Uma fatia de sombra; outra, de escuridão... ou um simples pedaço de alegria-luz que se faz pintura. Pintura liminal, de expectativa... de um tempo em suspensão, análogo ao qual nos encontramos, ainda, em face a esse processo pandêmico de vulto mundial... As coordenadas acima expressam a vontade da artista em conter o sol nos limites cúbicos da vitrine, em consonância ao seu projeto poético em torno da questão pictórica. Aqui, portanto, estamos falando tanto de subjetividades experienciadas por todos nós durante o isolamento pandêmico, quanto de estruturas arquiteturais, para as quais a luz é vital. Sobretudo, da sua inevitável geometria quando projetada sobre aquelas. Diga-se: por entropia. Ao explorar a geometrização da luz (de um horário qualquer) nessa espécie de “caixa perspéctica” que é a vitrine, negra <luz >branca toma um espaço-tempo, à maneira peculiar da pintura na fundação de espaços liminais. Porém, se na fruição a vitrine incita-nos a um olhar coletivo e fugaz, Cartaxo viabiliza-nos individualizá-lo, permitindo-nos uma experiência de imersão. Para tanto, explora a ideia de écran e/ou tela como modus operandi do olhar contemporâneo, em seu exercício virtual tão exacerbado nesse período pandêmico. Note-se, Zalinda nos lança na natureza dual que cabe à virtualidade, enquanto artifício para novas percepções do real e, assim, nos indica reflexões acerca do conceito de ilusionismo. Mas não apenas por isso. Todos os trabalhos que lidam com negativos geram imagens fantasmáticas, estranhamentos. Em negra < luz > branca, o que temos é a fantasmagorização do espaço. Metamorfoseado em espaço infinito que legamos do barroco. A vitrine deixa de ser um cubo branco para tornar-se um vazio fugidio, infinito, abismal... E assim, lidamos com intervalos que não são apenas físicos, como também imagéticos. Ambos, cabe dizer, espaços construídos, materiais. O primeiro, sendo arquitetônico; e o segundo, luz. E mais. A vitrine leva-nos, ainda, a espaços imaginados. Melhor: a espaços mentais. Confrontamo-nos, pois, com poéticas do espaço que, através de conceitos pictóricos, se fazem poesia. É através dessa tríade espacial, como poesia, que a artista realiza uma bela e curiosa operação: equaliza conceitos clássicos e barrocos, oferecendo-nos um espaço conjuntivo. Por meio do dispositivo virtual (smartphone), o visitante é instruído a configurar seu aparelho no modo inversão de cores (negativo) e, dessa forma, viabiliza-se o seu ingresso a um novo espaço. Aquele espaço abismal mencionado anteriormente. No qual, em solitude imersiva, experimenta deslimites espaciais, ao ver o negro se tornar branco e este, se transformar em negro e, dessa forma, a noção de real se desfazendo em negativo. As poéticas do espaço ꟷ imaginado ou construído ꟷ articuladas por Zalinda Cartaxo, pictoricamente, nesta vitrine, parecem reverberar o indizível. Algo da ordem do inefável nos é despertada na foto-vídeo que reitera as questões nela pontuadas, sob a ideia de um campo distendido da pintura. Inúmeras tomadas fotográficas de uma certa claraboia, nuances, matizes, espessuras, texturas e, sobretudo, gradações luminosas, são deslimites que se consolidam conjuntamente à “superficie pictórica inicial” (arquitetura e luz). À maneira da poesia, que divide e articula espontaneamente a continuidade espacial e temporal; e o faz tanto mediante frações mínimas e moduláveis, sugerindo lugares e direções; é a luz, medindo espaço e tempo, um pelo outro, na sensibilidade de si mesma. A relação intuitiva que a poesia pictórica de negra <luz >branca propõe, apontando-nos ao factual, em detrimento do pensamento meramente fenomenal, leva-nos além dos limites do concreto, rumo à íntima lembrança que não pode ser esquecida: na clausura, toda fresta é ar, respiro, luz... Zalinda Cartaxo é artista visual. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Desenvolve produção artística desde os anos oitenta focada na discussão crítica sobre as possibilidades físicas e conceituais da pintura hoje. A partir do conceito de pintura utiliza a pintura como conceito. Utiliza diversos meios para realização de sua obra: pintura, fotografia, intervenção, colagem, vídeo e desenho. É doutora em Artes pela USP; doutora em Artes Visuais e mestre em História e Crítica de Arte, ambas UFRJ; é especializada em História da Arte e Arquitetura no Brasil pela PUC-RJ, onde, também, se graduou em Licenciatura em Artes Plásticas. Realizou pós-doutoramento em História da Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, Portugal. É autora dos livros Pintura em Distensão (2006) e Pintura e Realidade. Realismo arquitetônico na pintura contemporânea. Adriana Varejão e José Lourenço. É Professora Titular na UNIRIO onde integra o PPGAC. VITRINE PANDÊMICA IV
Anna Braga - TERNAS PELES 14/5 a 19/6/2022 Curadoria Wilton Montenegro |
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CLAROS COFRES DE VIDRO ou FAÇO KELVI
Wilton Montenegro Rio de Janeiro, 2022 Durante a pandemia, para que a galeria do Estudio Dezenove não ficasse totalmente fechada, o crítico Adolfo Montejo Navas propôs ao artista Julio Castro uma série de exposições na vitrine voltada para a rua, sob o título geral de Vitrine Efêmera Pandêmica. Esta é a quarta, Ternas Peles, de Anna Braga. Espécie de prótese, a vitrine depende de quem as olha, ávido; do olhar que atravessa o vidro. “As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. É também o inimigo da propriedade”, escreve Walter Benjamin em “Experiência e pobreza”.[1] Em uma carta, o pintor Fernand Léger conta o ritual do dono de uma vitrine nas Passagens de Paris, que disputava o olhar com outro vitrinista em frente, e ao ver-se sendo visto, começa a arrumar a vitrine em função de quem a olha no momento, no caso, Léger e o crítico Reynal, transformando o simples ato de arrumação num ritual de performance tão importante quanto a mercadoria exposta.[2] Lugar por excelência do fetiche, a vitrine expõe mercadorias, sejam elas objetos ou corpos, ou ainda corpos-objeto. O crítico Luiz Renato Martins diz que na tela de Manet, Olympia oferece-se como mercadoria dentro do sistema capitalista: mulher de negócios, seu corpo é a única mercadoria que possui para vender.[3] Há uma pequena controvérsia entre Martins e a crítica Marisa Flórido César: aquele diz que o rosado nas faces de Olympia é um atrativo para valorizar a mercadoria, enquanto Flórido afirma que é a reserva de pudor da modelo, dada a ver inteiramente nua, o corpo coberto apenas por um bracelete e um laço de fita no pescoço. Tais interpretações foram produzidas por pessoas de gêneros diferentes, assim como aqui, curador e artista. Metacrítica, a tela foi originalmente exposta ao público em uma vitrine. O fetiche da mercadoria é reforçado na obra de Anna Braga, que usa anúncios classificados de um dos principais jornais do país nos quais mulheres (e alguns rapazes) oferecem seus corpos à venda para prazeres sexuais. Numa rara referência à ligação entre fotografia e imprensa, Benjamin escreve na “Pequena história da fotografia”: “A névoa que recobre os primórdios da fotografia é menos espessa que a que obscurece as origens da imprensa”. O termo de comparação entre as duas artes escolhido pelo filósofo é a “névoa que recobre os primórdios”. Segundo Houaiss, névoa é aquilo que dificulta a visibilidade ou o entendimento.[4] A imprensa, pois, evidencia-se como uma névoa que dificulta o entendimento: prega comportamento moral e bons costumes na sua página editorial, e expõe corpos para o consumo e prazer de quem pode pagar, em suas páginas de anúncios – ou seja, uma coisa vincula-se à outra. Acima de tudo o lucro, seja com qual mercadoria for. “Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis”, diz Benjamin em “O narrador”, texto seminal de 1936. Misturando imagens de corpos nus da estatuária grega sobre alguns classificados, Anna constrói sua reflexão sobre o uso desses corpos, especialmente o de mulheres jovens, com a finalidade explícita da disponibilidade para o prazer sexual. Basta que paguem as ternas peles. Aliás, Ternas Peles era o nome da exposição, curada por Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale, apresentada no Museu da República, na qual a artista apresentava a primeira versão dessa obra, com o negativo superposto ao positivo, sempre propondo e dificultando a visão. Todavia, para além dessa reflexão, há a construção da obra a partir do precário, que é o jornal, a estrutura de classificados, que remete às tiras de filmes (e ao cinema) secando em laboratórios fotográficos, além da ênfase na construção em acetato ou vinil transparente negativo, com o positivo ao fundo mas dificultando o olhar pelo distanciamento, num jogo de ir e vir, ou talvez devesse dizer: num jogo de ir e ver. Neste fragmento de Ternas Peles, tão importante quanto o que se vê, desdobra-se o que está oculto: o ar vazio, a projeção das imagens pela iluminação da rua ou o percurso da luz do sol na vitrine desafiando a possibilidade de superposição, a lembrar tanto a projeção do negativo no ampliador do laboratório, ou como de um filme. Disse o diretor Murilo Sales: “quando entro numa sala de projeção, olho para cima para ver o fluxo dos grãos no feixe de luz – isso é cinema, o resto é filme.” Na aparência de ingenuidade dos antigos classificados, a oferta dos corpos continua nos dias hoje em filipetas, folhetos distribuídos nas ruas, ou pregados em postes e nos antigos telefones públicos. Ou ainda, em pequenos pedaços de folhas de caderno estrategicamente colados em postes perto de hotéis da zona sul carioca, escritos à mão, com nome indicativo de gênero, um número de telefone e a expressão: “Faço Kelvi”. [1] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Tradução Sergio Paulo Rouanet. Brasiliense: São Paulo, 1996. Todas as citações de Walter Benjamin foram retiradas das Obras escolhidas. [2] MARGEL, Serge. Arqueologias do fantasma {técnica, cinema, etnografia, arquivo]. Org. João Camillo Pena. Tradução Maurício Chamarelli, Anne Dias. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017. [3] MARTINS, Luiz Renato. Uma mulher de negócios, um almoço no parque e um bar. Jorge Zahar: Rio de Janeiro [4] DANTAS, Gabriel Schünemann. Notas sobre a edição em Walter Benjamin: a impressão. http://www.anaisdosappil.uff.br/index.php/VISAPPIL-Lit/article/viewFile/362/204 Anna Braga é artista visual. Nascida em Campos dos Goytacazes, possui formação em Sociologia na UFF e Filosofia da Arte na PUC, e nos cursos livres da Escola de Artes Visuais Parque Lage. Reside no Rio de Janeiro. Ao longo de sua carreira realizou exposições individuais e coletivas no Brasil e no Uruguai. Nos anos 70 foi aluna do atelier de Anna Bella Geiger e, posteriormente, no Uruguai, país onde viveu durante muitos anos, foi aluna de pintores como Costigliolo e Maria Freire. Possui obras em acervos de museus, centros culturais e colecionadores particulares, com trabalhos publicados em livros, revistas e catálogos. VITRINE PANDÊMICA III
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Carne crua: mátria amada ao avesso A produção artística de Lígia Teixeira ocorre em diversos meios e gira em torno do universo feminino e seu imaginário no coletivo social. Mas não só. Na medida em que a artista se utiliza de referências históricas da arte, bem como de fatos da história sociopolítica mais recentes, em seu projeto poético, junto a elementos relacionados a sedução e erotismo, rastros oriundos da opressão social se presentificam em suas obras. E, feito navalha na carne, expõem as entranhas do modus operandi da sociedade violenta que, vergonhosamente, construímos sob o espírito da exclusão. As violências sofridas por mulheres exemplificam um aspecto da referida patologia social construída em séculos de história. No caso brasileiro, não há como discordar da afirmativa de Darcy Ribeiro em seu livro O povo brasileiro: “O Brasil é uma máquina de moer gente.” Máquina moedora voraz... capaz de devorar um país, como se fosse um pedaço de carne crua, assim... feito um pernil posto de ponta-cabeça. Sim! Desse jeitinho que nos habituaram a nos expor aos olhos do mundo: tão sórdido quanto sedutor, numa vitrine. Em Carne crua, de Ligia Teixeira, esta é uma metáfora cirúrgica, sobretudo agora, em resultado do doloroso processo pandêmico pelo qual todos nós estamos passando. Nesta obra, de maneira fria e asséptica, jaz um pedaço continental pelo avesso... Tão viril quanto o gancho que o fere é o sangue estancado da mátria amada dependurado. Carne crua, portanto, se apresenta como uma espécie de museália, nesta Vitrine Pandêmica: objeto que se presentifica em memória para predizer. O vídeo Ideologias, também assinado pela artista, acompanha e complementa a ideia contida nesta vitrine. Através da interface entre o filme de Chaplin, O grande ditador, e o objeto Ideologias, de Ligia, analogias e metáforas de jogos lúdicos de tirania e morte expandem a ideia de prazer e dor, ao serem exibidas como sinal de poder e, monumentalmente, relembram-nos para nos garantir o não esquecer. Sonia Salcedo del Castillo - fevereiro, 2022 Lígia Teixeira é artista visual. Nasceu no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha. Possui formação em Arquitetura na UFRJ e em diversos cursos de arte - no Museu de Arte Moderna - MAM e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro. Realizou exposições individuais no Paço Imperial, Museu de Belas Artes, CCJF, Centro Cultural Correios RJ, Galeria Cândido Mendes, entre outras, bem como diversas coletivas, entre as quais, o Museu Murilo Mendes em Juiz de Fora, o Espaço Cultural Correios RJ, o CCJF e a Galeria da UFF. Utiliza vários meios de expressão para a realização do seu trabalho, tais como a pintura, instalações, objetos, vídeos e performances. Sua investigação tem como foco o universo feminino e suas representações sociais e no imaginário coletivo. Criando um diálogo entre as questões do inconsciente e da vida urbana nos dias de hoje, o corpo, o desejo, o erotismo, a sexualidade, são temas que perpassam a sua obra, assim como as diversas representações que envolvem a natureza feminina e os seus lugares de fala no mundo contemporâneo. |
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VITRINE PANDÊMICA II
rafael amorim - QUARTO DE MENINO 13/11 a 19/12/ 2021 Curadoria Wilton Montenegro Texto Elisa de Magalhães fotos Wilton Montenegro
Quarto de menino apresenta o que resta, o rastro dos corpos que estiveram na noite anterior sobre lençóis e travesseiros. O amassado e revirado das roupas de cama nos indica que, sobre elas, houve relações de amor. O título quer revelar a imagem: corpos de meninos. Mas rafael amorim, que se quer assim, todo em minúsculas, nos dá a ver a ruína antes da ruína que resta de seus relacionamentos: as imagens são dos quartos, vazios, impressas em voil transparente, penduradas em varais, fragmentos de memória, na vitrine... para ver. Imagens do depois... para imaginar o antes. Curioso notar como cada quarto tem algum azul, os lençóis, uma parede, algum detalhe ou objeto, como se essa cor fosse determinante na vida do menino, uma marca de gênero indelével, todavia insidiosa - está lá, mas não se quer notada. Marca quase invisível de um padrão de comportamento. Há uma foto na qual o azul não está no quarto, mas entra pela janela. Não é curioso que rafael tenha ido buscar um azul ausente no quarto daquele menino? Poderíamos tomar o trabalho de rafael amorim como uma pesquisa de viés antropológico, ou sociológico. Observando os quartos, os pisos, os objetos dispostos neles, os móveis ou a ausência deles, se há cama ou colchão no chão, se há ar condicionado ou ventilador, os tecidos dos lençóis, as fronhas e até os aparelhos de telefone celular que restam descansando sobre os colchões, anunciando que há gente, percebemos as diferenças em relação à escala social. Em alguns quartos há livros, em estantes, sobre as mesas de cabeceira, sobre a cama ou no chão: ali mora alguém que estuda, ensina, ou simplesmente gosta de ler. Todavia, este não é o interesse de rafael. Em suas fotos há uma observação poética de quartos de meninos que se relacionam com meninos, há um dar a ver da própria intimidade, um desnudar-se invisível, translúcido, como são as fotos impressas no tecido. Quase transparentes, presas como roupas ou poemas em varais, as imagens de rafael são ruínas, sim, mas são também confissões, testemunhos e também são mundos inventados. Mais, para além, mais além disso, elas são epitáfios: “Devia ter me importado menos/com problemas pequenos/ter morrido de amor.” 1 1 Epitáfio, composição de Sérgio Britto gravada pelos Titãs. P.S. do curador: a quase imobilidade à qual fomos forçados pela pandemia, obrigou o artista a ralentar seus caminhos de transeunte de ônibus (filmava a paisagem urbana pelas janelas) e leitos (já não podia dar-se a outros como gostava), ou não mais retalhar suas roupas como relações; ou talvez aqueles trabalhos estivessem prontos e o artista estaria buscando outros. Foi sua obra e vida a escolha para expor(-se) na vitrine pandêmica imaginada pelo poeta Adolfo Montejo Navas e viabilizada a convite do artista Julio Castro. “Quarto de menino” expõe fotos impressas como sudários, suores de amores. Nada mais é dito por rafael amorim, que se quer assim assinado pequeno nos nomes. Deixo para ele e todos, o trecho de um poema de e. e. cummings, que também, se assinava minúsculo, na magnífica tradução de augusto de campos: lentes estendem nãodesejo por ondeante ondequando até que ele retorne ao seu nãoeu. rafael amorim, vive e trabalha no Rio de Janeiro, é poeta e artista visual, trabalha entre a palavra e a reorganização de signos comuns às vivências homoafetivas no subúrbio carioca. Mestrando no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia (PPGAV - UFBA), graduou-se em Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Integrou a segunda turma da Elã: Escola Livre de Artes da Maré e o 2º Ciclo de residências da Galeria Salgado e Refresco, ambos em 2021. Durante 2019 participou do Programa de Formação Gratuito da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (2019) e teve sua primeira individual no Centro Cultural Phábrika: "eu mesmo juntarei a estrela ou a pedra que de mim reste sob os meus escombros." Além de participar em diversas mostras coletivas entre São Paulo, Belo Horizonte, Goiás e João Pessoa. Entre elas: “Crônicas Cariocas” no Museu de Arte do Rio (MAR), “Conversas in loco”, na Arte Plena Casa Galeria - GO e “45º Salão de Arte de Ribeirão Preto” no Museu de Arte de Ribeirão Preto, onde foi artista premiado e apresentou a individual "cuidado, animal selvagem" (2021). Autor de "como tratar paisagens feridas" (Ed. Garamond), seu livro de estreia selecionado na categoria novo autor fluminense no 4º Prêmio Rio de Literatura e de "matrimônio" (Margem Edições). |
VITRINE PANDÊMICA I
Ronald Polito - VIRE-SE Curadoria Adolfo Montejo Navas 2 a 30/10/2021 |
Rondó crítico
O poema gira, roda, é de ação, tem sua própria dinâmica de leitura, como pedia Wlademir Dias Pino em cada obra. Funciona conosco. E veio para subverter, subverter-se em sua simplicidade oriental, minimalista: uma palavra, um verbo a ser conjugado, projetando-se no espaço vazio como um exercício, um contra-anúncio, virando-se do avesso, em sintonia com nossa condição submersa, invertida, paradoxal: Vire-se. Com a ironia manifesta ao contrário, canto de resistência. E resistir a quê? A um infortúnio histórico? Só? Ou pior, a uma mutação antropológica, como temia Pasolini? Com certeza, o perigo maior que o poeta e cineasta italiano enxergou em tempo, já nos últimos anos de sua vida, foi a manifestação de um novo fascismo incorporado, no qual a panaceia tecnológica, como trama do poder, e a nova sociedade do bem-estar eletrônico, diríamos, ainda estavam desenhando-se, sem imaginar o estágio narcotizante a que chegaria, a idolatria qual bezerro de ouro atual. As consequências da banalização existencial estão à vista quanto ao feitiço da ignorância. O poema visual ampliado de Ronald Polito fala disso, da ampla servidão, voluntária (profecia sempre atual de La Boétie), e de como não existe fora da linguagem. O dentro e o fora vivem juntos na poesia, na arte, no pensamento. Todo combate é duplo, fenomenologicamente falando. Os signos se ressuscitam, ou o regime de thánatos vence. Na política reificada, ou o que é chamado como tal pelos profissionais de gravata, deveria acontecer o mesmo. Daí que esta econômica e sutil textualidade visual se potencie, além de seu foro primigênio, de seu ponto de partida inicial. Seu raio de ação supera as oito palavras. Não em vão, esta intervenção inaugura a Vitrine pandêmica, é sua primeira edição, e como declaração de princípios em curso coincide com a história de nossos dias, com passeata cívica nas ruas contra a barbárie disfarçada de logística, de poder (perverso em sua contrassenha). O lema, no fundo, é o mesmo, em convergência, quando o poema visual já saiu da página e amplia sua onda. A nostalgia da vida continua sendo maior – aparição mais que autoridade –, nosso lado oximórico, profano de nos virar, resistir/ritsiser AMNavas, setembro/2021 Ronald Polito vive e trabalha em Juiz de Fora (MG), é poeta e tradutor. Publicou os livros de poemas Solo, Vaga, Objeto, Intervalos, De passagem, Pelo corpo (com Donizete Galvão), Terminal, Ao abrigo e Rinoceronte, e o infanto-juvenil A galinha e outros bichos inteligentes, com poemas visuais de Guto Lacaz. Em prosa, publicou os livros Cenas japonesas: crônicas de um brasileiro em Tóquio e Os viajantes e outras narrações breves. Traduziu escritores catalães como Joan Brossa, Salvat-Papasseit, J. V. Foix, Salvador Espriu, NarcísComadira, entre outros. Nos últimos dez anos passou a trabalhar mais intensamente com artes plásticas realizando a exposição individual Minimundos no Museu de Arte Murilo Mendes (Juiz de Fora, março a agosto de 2019. Participou também de exposições coletivas, como Sinalítica (MuSA, Curitiba, 2017), e é autor convidado da I Jornada Internacional de Poesia Visual (Casa das Rosas, São Paulo, 2021). |