SÉRIE VITRINE PANDÊMICA
Quando o vírus duplo do Brasil virou pandemia, afetando milhões de pessoas, e o número de mortos superou os 500.000, a arte, como qualquer atividade digna do espírito, do gênero humano, ficou estatelada, estupefata. Quase muda. O impacto demônico ou perverso, como se sabe, também tem sua indústria, inércia, incluso colaboracionismo. O negacionismo nega até o luto. Mas no meio da assombração, a exposição que representa a doença – também política – pede outra vitrine simbólica – leia-se representação – que não a meramente midiática, circunstancial, ilustrativa, burocrática, pede responder melhor, precisamente, com outro olhar: de respeito pelo ser que somos quanto mais procura seu humanitas possível, no extremo de seus limites. E, ao mesmo tempo, tudo vem exigindo, requerendo uma mirada de altura crítica, que ofereça uma imagética ético-estética para as circunstâncias: inferir outra lógica visual e perceptiva das coisas, menos ligada à narrativa da morte, à imposição de tânatos. Diante dos tempos de tirania iníqua, se precisam mais declarações e práticas de vida, reinaugurações. Fora do cerco cego, embestado, da história obrigatória, a ideia desta Vitrine Efêmera Pandêmica ressurge em sintonia, traz algo oportuno, uma iminência artística consequente, novas experiências/formas que ajudam a redimensionar o real, sempre em crise de legitimidade verdadeira. As novas propostas visuais desta Vitrine Efêmera Pandêmica só podem ser urgentes, e apesar de lidar com o lógico confinamento (aliás, quem mais proclama liberdade de contágio nunca foi amigo da liberdade de expressão, por exemplo), elas são ainda mais necessárias, porque em seu dever espiritual, desconfinam; e, paradoxalmente, nos enraízam, propugnando outro habitat mais amplo e profundo, longe da proclamada e falsária domesticação do mundo. (AMNavas/2021)
Quando o vírus duplo do Brasil virou pandemia, afetando milhões de pessoas, e o número de mortos superou os 500.000, a arte, como qualquer atividade digna do espírito, do gênero humano, ficou estatelada, estupefata. Quase muda. O impacto demônico ou perverso, como se sabe, também tem sua indústria, inércia, incluso colaboracionismo. O negacionismo nega até o luto. Mas no meio da assombração, a exposição que representa a doença – também política – pede outra vitrine simbólica – leia-se representação – que não a meramente midiática, circunstancial, ilustrativa, burocrática, pede responder melhor, precisamente, com outro olhar: de respeito pelo ser que somos quanto mais procura seu humanitas possível, no extremo de seus limites. E, ao mesmo tempo, tudo vem exigindo, requerendo uma mirada de altura crítica, que ofereça uma imagética ético-estética para as circunstâncias: inferir outra lógica visual e perceptiva das coisas, menos ligada à narrativa da morte, à imposição de tânatos. Diante dos tempos de tirania iníqua, se precisam mais declarações e práticas de vida, reinaugurações. Fora do cerco cego, embestado, da história obrigatória, a ideia desta Vitrine Efêmera Pandêmica ressurge em sintonia, traz algo oportuno, uma iminência artística consequente, novas experiências/formas que ajudam a redimensionar o real, sempre em crise de legitimidade verdadeira. As novas propostas visuais desta Vitrine Efêmera Pandêmica só podem ser urgentes, e apesar de lidar com o lógico confinamento (aliás, quem mais proclama liberdade de contágio nunca foi amigo da liberdade de expressão, por exemplo), elas são ainda mais necessárias, porque em seu dever espiritual, desconfinam; e, paradoxalmente, nos enraízam, propugnando outro habitat mais amplo e profundo, longe da proclamada e falsária domesticação do mundo. (AMNavas/2021)
VITRINE PANDÊMICA V Zalinda Cartaxo - NEGRA < LUZ > BRANCA 02 a 30/7/2022 Curadoria Sonia Salcedo del Castillo na clausura, toda fresta é ar, respiro, luz...
Sonia Salcedo del Castillo, junho I 2022 “13:10h, T. Oriente 16 A”, eis as coordenadas da quinta vitrine pandêmica: negra < luz > branca ꟷ um marco (in)temporal assinado por Zalinda Cartaxo. Nela, há um quê de esperança; outro, de nostalgia. Um tanto de solitude; outro, de resiliência. Uma fatia de sombra; outra, de escuridão... ou um simples pedaço de alegria-luz que se faz pintura. Pintura liminal, de expectativa... de um tempo em suspensão, análogo ao qual nos encontramos, ainda, em face a esse processo pandêmico de vulto mundial... As coordenadas acima expressam a vontade da artista em conter o sol nos limites cúbicos da vitrine, em consonância ao seu projeto poético em torno da questão pictórica. Aqui, portanto, estamos falando tanto de subjetividades experienciadas por todos nós durante o isolamento pandêmico, quanto de estruturas arquiteturais, para as quais a luz é vital. Sobretudo, da sua inevitável geometria quando projetada sobre aquelas. Diga-se: por entropia. Ao explorar a geometrização da luz (de um horário qualquer) nessa espécie de “caixa perspéctica” que é a vitrine, negra <luz >branca toma um espaço-tempo, à maneira peculiar da pintura na fundação de espaços liminais. Porém, se na fruição a vitrine incita-nos a um olhar coletivo e fugaz, Cartaxo viabiliza-nos individualizá-lo, permitindo-nos uma experiência de imersão. Para tanto, explora a ideia de écran e/ou tela como modus operandi do olhar contemporâneo, em seu exercício virtual tão exacerbado nesse período pandêmico. Note-se, Zalinda nos lança na natureza dual que cabe à virtualidade, enquanto artifício para novas percepções do real e, assim, nos indica reflexões acerca do conceito de ilusionismo. Mas não apenas por isso. Todos os trabalhos que lidam com negativos geram imagens fantasmáticas, estranhamentos. Em negra < luz > branca, o que temos é a fantasmagorização do espaço. Metamorfoseado em espaço infinito que legamos do barroco. A vitrine deixa de ser um cubo branco para tornar-se um vazio fugidio, infinito, abismal... E assim, lidamos com intervalos que não são apenas físicos, como também imagéticos. Ambos, cabe dizer, espaços construídos, materiais. O primeiro, sendo arquitetônico; e o segundo, luz. E mais. A vitrine leva-nos, ainda, a espaços imaginados. Melhor: a espaços mentais. Confrontamo-nos, pois, com poéticas do espaço que, através de conceitos pictóricos, se fazem poesia. É através dessa tríade espacial, como poesia, que a artista realiza uma bela e curiosa operação: equaliza conceitos clássicos e barrocos, oferecendo-nos um espaço conjuntivo. Por meio do dispositivo virtual (smartphone), o visitante é instruído a configurar seu aparelho no modo inversão de cores (negativo) e, dessa forma, viabiliza-se o seu ingresso a um novo espaço. Aquele espaço abismal mencionado anteriormente. No qual, em solitude imersiva, experimenta deslimites espaciais, ao ver o negro se tornar branco e este, se transformar em negro e, dessa forma, a noção de real se desfazendo em negativo. As poéticas do espaço ꟷ imaginado ou construído ꟷ articuladas por Zalinda Cartaxo, pictoricamente, nesta vitrine, parecem reverberar o indizível. Algo da ordem do inefável nos é despertada na foto-vídeo que reitera as questões nela pontuadas, sob a ideia de um campo distendido da pintura. Inúmeras tomadas fotográficas de uma certa claraboia, nuances, matizes, espessuras, texturas e, sobretudo, gradações luminosas, são deslimites que se consolidam conjuntamente à “superficie pictórica inicial” (arquitetura e luz). À maneira da poesia, que divide e articula espontaneamente a continuidade espacial e temporal; e o faz tanto mediante frações mínimas e moduláveis, sugerindo lugares e direções; é a luz, medindo espaço e tempo, um pelo outro, na sensibilidade de si mesma. A relação intuitiva que a poesia pictórica de negra <luz >branca propõe, apontando-nos ao factual, em detrimento do pensamento meramente fenomenal, leva-nos além dos limites do concreto, rumo à íntima lembrança que não pode ser esquecida: na clausura, toda fresta é ar, respiro, luz... Zalinda Cartaxo é artista visual. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Desenvolve produção artística desde os anos oitenta focada na discussão crítica sobre as possibilidades físicas e conceituais da pintura hoje. A partir do conceito de pintura utiliza a pintura como conceito. Utiliza diversos meios para realização de sua obra: pintura, fotografia, intervenção, colagem, vídeo e desenho. É doutora em Artes pela USP; doutora em Artes Visuais e mestre em História e Crítica de Arte, ambas UFRJ; é especializada em História da Arte e Arquitetura no Brasil pela PUC-RJ, onde, também, se graduou em Licenciatura em Artes Plásticas. Realizou pós-doutoramento em História da Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, Portugal. É autora dos livros Pintura em Distensão (2006) e Pintura e Realidade. Realismo arquitetônico na pintura contemporânea. Adriana Varejão e José Lourenço. É Professora Titular na UNIRIO onde integra o PPGAC. |