Em 1993, Iberê Camargo afirmava em entrevista para a revista Veja: “Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói.”[1] A frase poderia ter sido escrita por Maria Lídia Magliani, cuja obra conflui em muitos aspectos com a de Iberê. Os dois artistas optaram pela matriz expressionista, sem se importar com o fato de o movimento estar, ou não, em voga; sempre defenderam, com veemência, a pintura como forma de expressão, mesmo quando pressionados a buscar uma arte mais experimental, e seus trabalhos são contundentes, urgentes e ríspidos – como os ventos do Sul. Também gaúcha, 32 anos mais jovem, Magliani era mulher, negra e pobre, e, embora essa conjunção tenha freado muitas vezes sua produção, foi também o cadinho de sua obra, que é visceral, dolorida e pungente – “uma arte para incomodar”. Na carta de Iberê Camargo para Magliani, localizada no material documental da Fundação Iberê, durante a pesquisa para a exposição que agora apresentamos, e reproduzida na abertura do catálogo, o artista, que não era pródigo em elogios, reconhece a afinidade entre a obra de ambos com as palavras: “Nós dois temos a mesma meta, o mesmo ideal, a mesma devoção.” Um eloquente endosso do mestre gaúcho para Maria Lídia Magliani e uma confirmação do acerto da Fundação Iberê em trazer para o público uma grande retrospectiva da artista. Denise Mattar - texto para o catálogo da exposição MAGLIANI (fragmento). Como significar um centro de referência?
O Núcleo Magliani se caracteriza como um esforço de preservação independente da política pública. Fruto do contrato de parceria com a família da artista, sua base é o Estudio Dezenove, espaço que coordeno e foi durante anos atelier de Maria Lídia Magliani no Rio de Janeiro. O Núcleo Magliani desde 2013 mantém preservado o acervo da artista entre obras, documentos e materiais de referência que deram início à pesquisa e catalogação do seu trabalho. Sem um modelo prévio de gestão de acervo artístico, realizei um trabalho muitas vezes intuitivo, de construção permanente em torno da memória de uma longa e rica trajetória, juntando partes de um quebra-cabeças e desvendando significados. O que inicialmente seria um website e um arquivo documental para acesso público transformou-se em trabalho contínuo de preservação do acervo físico e formação de um arquivo digital. Para fazer circular a obra, a liberação de uso de imagem foi uma demanda real, sendo o Núcleo o facilitador para as autorizações, permissões formais necessárias para a existência de publicações e projetos. A abertura dos arquivos a pesquisadores lastreou as teses “Atravessamentos Feministas: um panorama de mulheres artistas no Brasil dos anos 60/70” de Talita Trizoli (USP) e “Maria Lídia Magliani, uma trajetória possível” de Luanda Dalmazo (UFRGS), assim como a produção de alguma exposições, entre elas “Magliani - uma troca: teu olho, minha mão” em 2018 e “IDIOMA-IMAGEM na gravura de Magliani” em 2019. Magliani produziu muito, tinha urgência. No Estudio Dezenove ficaram na maioria trabalhos de seus últimos anos de produção. Com uma capacidade rara de atuar em várias áreas simultaneamente, deixou uma obra rica e diversificada. Ao falecer aos 66 anos estava em plena atividade e revolucionando internamente seu trabalho, para surpresa dos que se acostumaram a uma atmosfera visceral em sua produção, com personagens carregados de drama expressionista. Em suas últimas séries, ainda pouco conhecidas, vemos uma artista enfrentando novos paradigmas, talvez mais lírica e numa visível ponte com seus trabalhos iniciais. Com a mostra na Fundação Iberê Camargo um novo ciclo no processo de institucionalização da obra de Magliani se anuncia para situá-la com merecimento na história da arte brasileira. Julio Castro Rio de Janeiro, janeiro de 2022 |